Este artigo analisa em três textos a proposta de Tarifa Zero aos domingos e feriados recentemente anunciada pelo atual governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha (MDB-DF). As transformações recentes da política de transporte foram o foco do primeiro texto. No segundo, apresento um breve histórico da tarifa zero no Distrito Federal. Neste terceiro e último texto da série, faço uma análise da proposta apresentada e uma avaliação dos desafios e oportunidades que ela coloca a quem luta.
Análise da proposta do Ibaneis de Tarifa Zero
É necessária uma análise de como foi constituída esta proposta de Tarifa Zero que aparentemente apareceu do nada na caneta de Ibaneis.
De pronto, temos uma situação em que o número de passageiros do Distrito Federal continua, mesmo com oscilações, em decréscimo, valores de insumos pagos pelas empresas crescendo, assim como o tamanho dos créditos suplementares oferecidos pelo Governo do Distrito Federal (GDF). Podemos observar este cenário olhando o gráfico da secretaria de mobilidade.

Nacionalmente temos um cenário de aumentos de tarifas em dezenas de cidades do país no começo de 2025. O GDF, por sua vez, realizou um anúncio de que congelará o preço das passagens até 2026, ano em que Ibaneis encerra seu mandato e pretende concorrer ao Senado ou mesmo à vice-presidência. Talvez esse anúncio não seja tão somente uma decisão do governo, mas uma impossibilidade jurídica de aumento: o Ministério Público do DF venceu instâncias iniciais de uma Apelação Cível que, grosso modo, impede o GDF de aumentar tarifas de transporte antes de aprovar na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) lei específica que regulamente este tipo de ação (AC 0709535-51.2021.8.07.0018).
Do ponto de vista econômico duas questões chamam atenção: a arrecadação tributária (especialmente ICMS) do Distrito Federal de 2024 superou a expectativas para o ano, com o governo afirmando que “isso ajuda no financiamento de políticas públicas”.
Além disso, na proposta de orçamento de 2025 o GDF realocou os recursos do passe livre estudantil – que estavam originalmente na pasta de transportes – para a pasta de educação. Quando questionado sobre os prejuízos desta mudança para o orçamento, o subsecretário de orçamento público da Secretaria de Economia, André Moreira, disse que “chegou-se a um consenso de que o passe livre estudantil tem finalidade educacional, portanto estaria melhor representado dentro dos números da educação””.
Ou seja, em um contexto de disputas jurídicas em torno de possível aumento de tarifas, há uma fonte geral de recursos para políticas públicas no DF e uma fonte especificamente ociosa de financiamento para o transporte coletivo. Estes recursos, ao que parece, estão sendo direcionados para manter e ampliar o lucro das empresas de transporte coletivo. Ao invés de aumentar as passagens – o que os donos do transporte estão demandando e a justiça embarreirando – o governo está buscando outras fontes de ampliar o lucro das empresas de ônibus.
Neste sentido, a adoção da Tarifa Zero aos domingos e feriados cabe como um atrativo econômico: são dias em que há pouca gente utilizando o transporte coletivo, dado o preço e a pouca oferta. Ao aumentar as viagens neste período por meio da gratuidade, o governador financia o aumento do lucro das empresas em sua receita mensal e anual, evitando aumento de tarifas. A existência de um grupo de estudos do GDF sobre o passe livre universal, tal qual demandado pela direção do MDB, junto aos diferentes estudos produzidos pela CLDF, constituiu uma base técnica sob a qual a pode se arvorar.
Trata-se de uma estratégia bem semelhante à utilizada por Arruda em 2009, quando tentou alavancar sua popularidade por meio de um passe livre estudantil que aumentava o lucro dos empresários. Aquela proposta, porém, não foi suficiente para conter a avalanche de denúncias que logo se apresentaram sobre sua gestão em termos de desvio de verbas, financiamento de deputados para votações do governo e todo um amplo esquema apelidado Panetonegate, mensalão do DEM, caixa de pandora, entre outros nomes.
É evidente que há tentativa de ganho eleitoral com a Tarifa Zero.
Porém, tomando como base este exemplo, atualmente poucos se recordam de quem foi o governo que implementou o Passe Livre Estudantil, mas muitos se lembram das lutas que o viabilizaram.
Desafios e como agir
Lutamos há décadas pela conquista da tarifa zero, podendo dizer sem qualquer soberba ou autopromoção que fomos determinantes na constituição desta pauta.
Sem as mobilizações populares e insistência no debate, dificilmente a pauta da gratuidade do transporte estaria hoje como uma opção para governos e gestores que sempre foram contra a mesma. Eles foram convencidos, a contragosto de suas ideologias individualistas, neoliberais de investimento público zero, que a medida seria uma boa saída para seus projetos políticos. Porém, apesar de haver um suposto consenso na implementação da tarifa zero, ela acontece por meio de diferenças de intenção e projeto que merecem ser analisadas.
A Tarifa Zero, tal qual está apresentada pelo GDF, realiza objetivamente a necessidade de maior circulação popular e garante o direito à mobilidade nos domingos e feriados. Porém ela está muito distante dos objetivos e propostas do Movimento Passe Livre para a pauta.
Ela não muda a forma de cálculo da tarifa e, com isso, faz um duplo processo complicado para a operação do transporte público.

Em primeiro lugar, o cálculo do transporte baseado no Índice de Passageiros por Quilômetro – que comete o equívoco de vincular custo da viagem ao número de passageiros, o que é uma inverdade – favorecerá a superlotação e falta de oferta de transportes no domingo. As empresas terão interesse em oferecer poucos veículos que superlotem, pois o lucro do transporte virá do número de catracas rodadas. Isso porque os indicadores atuais do transporte foram todos organizados para maximizar o lucro e não para ampliar o direito ao transporte.
Outra questão está vinculada ao sistema metroviário. O GDF tem a intenção explícita de privatizar a operação do metrô e está há décadas tentando precarizar mais e mais o serviço. No dia de domingo, aliás, muitas vezes a empresa chega a operar com efetivo menor do que o mínimo necessário. Ou seja, a tarifa zero pode estressar a operação do metrô nesta data e, num processo mais amplo, gestar insatisfação com a empresa.
O processo de decisão de implementação da Tarifa Zero, também, não teve qualquer transparência, participação popular ou mesmo institucional/parlamentar. Neste sentido, tanto a economia da medida quanto as decisões operacionais ocorrem de forma obscura. Os seus gastos, impactos sobre a população e seu peso no orçamento, apesar de serem passíveis de alguma dedução, seguem com controle total das empresas de transporte e governo.
Porém, essas três contradições do projeto governamental são brechas para a ação popular.
A falta de diálogo do governo sobre a proposta abre a possibilidade das forças populares fazerem debate público, assembleias de rua, manifestações, audiências e, assim, organizar a insatisfação para defesa de nosso projeto. Essa organização da sociedade pode ter condições de intervir sobre a falta de veículos e linhas, conquistando a melhoria do transporte aos domingos.
Junto disso, discutir a economia do transporte e a inadequação dos atuais indicadores e fórmulas de cálculo do mesmo com a mobilidade como direito. Por exemplo, trocar o inadequado IPK pelo custeio do transporte orientado pelo custo do serviço por veículo, dissociando o valor do transporte do número de passageiros que superlotam os veículos.
Este processo coloca em debate definitivo a implementação da tarifa zero todos os dias no Distrito Federal. Esta é a vitória de momento, o campo de ações que se abre a partir de agora.
O fato consumado da passagem gratuita durante alguns períodos da semana será experiência pública e coletiva da gratuidade. Nas outras cidades onde a tarifa zero foi implementada – parcial ou totalmente – o que se observou foi que os impactos positivos da política na economia da cidade e o maior debate social sobre o tema impactaram melhorias na execução do transporte. Neste sentido, o DF soma-se a este grande debate nacional surgido a partir de experiências municipais, apontando a necessidade de uma política federal: a criação do Sistema Único de Mobilidade.
Trata-se, então, de uma vitória com sabor amargo.
A conquista do transporte como direito, da forma como vem ocorrendo, está em constante descompasso entre a luta social e a implementação das medidas: o passe livre estudantil aconteceu quando o movimento parecia derrotado; a implementação do transporte como direito constitucional foi assinada simultaneamente à criminalização caluniosa sobre as jornadas de 2013; a tarifa zero tem sido implementada nas cidades com variados modelos e interesses distintos das organizações que a gestaram. Este é o nosso paradoxo.
Porém, como refleti em outro artigo sobre o tema, atuar em um cenário de Tarifa Zero crescente, pautando a sociedade por meio da organização popular, é muito mais interessante que sob um sistema tarifário. Nossa tarefa não é a de lamentar que a realidade não se domou aos nossos desejos, mas sim de continuar desejando um futuro melhor e lutando por ele com nossas melhores armas: as que vem de baixo.

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*Paíque Duques Santarém é antropólogo, urbanista e militante do Movimento Passe Livre e do Observatório das Metrópoles.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.