Nos últimos 4 anos, mais de 50 pessoas morreram só no Recife por deslizamentos de terra decorrentes de fortes chuvas. Esse número é assustador e totalmente fora da curva do histórico de casos na cidade há pelo menos 30 anos. Recife, que no início da década de 2000 construiu mecanismos de prevenção e controle nas áreas de risco, parece retroceder gravemente – e precisamos falar sobre isso.
Precisamos falar sobre isso porque todas essas mortes são de pessoas pobres, a maioria preta, moradores dos morros da cidade. Pessoas pelas quais a elite do Recife não se comove e não se mobiliza. Pessoas vitimadas, antes de tudo, pela enorme desigualdade social da segunda capital mais desigual do Brasil.
Sempre que chove, cai sobre o Recife não só a água das nuvens – desaba sobre a cidade o fardo de séculos de exclusão dos mais pobres, expulsos das áreas de planície durante todo o século 20, em ações conjuntas do poder público com as oligarquias locais – como a ofensiva contra os mocambos liderada pelo reacionário Agamenon Magalhães, na década de 30, que intensificou a ocupação dos morros.
Antes de serem vitimados pelas chuvas, os pobres são vítimas da histórica falta de habitação apropriada e da marginalização social, que os empurra para ribanceiras e áreas de risco. É preciso reafirmar isso para não reforçar o discurso deseducador que põe na natureza a culpa pelas condições de habitabilidade das pessoas.
Ao mesmo tempo, cabe reconhecer que a peculiar posição do Recife, como cidade onde deságuam rios e onde o nível do mar aumenta cada dia mais, é um complicador para prevenção de tragédias socioambientais. Relatório da ONU elenca nossa cidade como a 16ª mais vulnerável às mudanças climáticas no mundo, apontando-a como uma das que mais desafios tem a vencer nesse quesito.
Juntos, desigualdade social e especificidades ambientais da cidade formam um complexo cenário. Porém, o que vem ocorrendo no Recife na última década é que um círculo vicioso entre esses dois fatores vem se fortalecendo. Seguindo a tendência do ocidente neoliberal a cidade vem sendo gerida por um modelo empresarial que super empodera o setor privado, submetendo o planejamento urbano e a adaptação da cidade aos interesses da especulação imobiliária em detrimento da maioria dos recifenses.
Algumas ações são muito emblemáticas nesse sentido. Em maio de 2022, Recife viveu sua pior tragédia socioambiental desde as grandes enchentes das décadas de 1960-70. Pouco mais de um ano depois, a prefeitura enviou para a Câmara de Vereadores um projeto de lei que, pasme, propunha a flexibilização das leis ambientais instituindo o licenciamento auto declaratório. Trata-se de legislação que reproduz aqui o modelo desastroso do governo do Rio Grande do Sul, privilegiando o setor privado e pondo em risco a proteção da cidade.
Mesmo em projetos que teoricamente servem para conciliar resiliência climática com justiça social, como é o caso do ProMorar, a lógica do setor privado se sobrepõe e famílias ribeirinhas vêm sendo ameaçadas de desapropriação ao longo do curso do rio Tejipió, em regiões que interessam à classe imobiliária. Tudo a partir de decisões pouco dialogadas, sem participação social, como é da índole de lógicas empresariais geridas por “técnicos”.
Aliás, o Recife assiste a uma enxurrada de desapropriações nos últimos anos, algumas delas nas áreas das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que existem exatamente para proteger as populações socialmente vulneráveis, o que torna a ofensiva ainda mais violenta.
Comunidades inteiras sendo desalojadas de suas casas, recebendo indenizações pequenas, para dar espaço a obras públicas que valorizam terrenos privados, beneficiando a especulação imobiliária e expulsando populações pobres de bairros valorizados, como Monteiro, Apipucos, Pina e outros, forçando-as a migrarem para ocupações inapropriadas.
Uma cidade que tem um déficit habitacional de mais de 70 mil moradias não deveria estar promovendo numerosas desapropriações. As entregas habitacionais feitas pela atual gestão, a maioria com recursos do governo Lula, ainda não cobrem o número de pessoas afetadas pelas desapropriações da última década de governos do PSB.
Os morros do Recife são a síntese de todos esses problemas ambientais e sociais, onde as consequências desse processo são fatais. E seus moradores são vítimas ainda de outro problema: a descontinuidade de políticas de prevenção de deslizamento de terra em áreas de risco.
Durante toda a década de 2000, foram criadas políticas robustas de diminuição dos fatores facilitadores de desastres socioambientais. A criação do histórico “programa guarda-chuva”, em 2001, pelo governo do PT, revolucionou a forma como a defesa civil da cidade atuava nos morros.
O programa integrava ações de 13 secretarias e fazia intenso monitoramento das áreas de risco. Mais de sete mil pontos de risco foram eliminados. Foram criados núcleos de defesa civil nas comunidades e disponibilizado auxílio psicológico para famílias que viviam nessas áreas.
Além disso, o município possuía uma política própria e bem articulada na área habitacional, dedicando recursos próprios para democratizar a habitação. Foram entregues quase cinco mil unidades habitacionais e removidas quase duas mil palafitas em sete anos. O auxílio moradia pago pela prefeitura em 2005 era de R$151, o que a preço de hoje (descontado o IGPM do período) equivaleria a R$539. Mas em 2025, 20 anos depois, o auxílio é de R$300. Uma involução.
O resultado desse conjunto de ações foi uma queda brusca de 87% no número de mortes entre 2001 e 2008, tendo morrido 8 pessoas em 8 anos. A triste marca atual, de 53 pessoas mortas em apenas 4 anos (2021-2024) é inadmissível numa cidade onde esses instrumentos já haviam sido construídos e deveriam ser preservados como política de estado. Além disso, hoje há mais recursos tecnológicos e científicos à disposição.
Governar para os mais pobres é uma decisão política. A atual gestão na prefeitura não governa para os morros – atua sob a batuta do setor empresarial. Não se propõe a ouvir as pessoas da periferia, tendo desarticulado as políticas de participação popular do período anterior, elegendo seus quadros técnicos como protagonistas dos planos e estratégias da cidade, sob os interesses dos setores enriquecidos, que desenham os contornos urbanos de Recife como bem querem.
Tudo isso leva o Recife a retroceder na prevenção de desastres socioambientais e atemoriza sua população mais humilde. Após o assustador episódio desse mês de fevereiro e do elevado número de mortes nos últimos anos, o governo deveria mobilizar toda a cidade em torno desse debate. Afinal, o inverno vem aí e o Recife não aguenta mais tantas mortes.
As ações para conter os efeitos da mudança climática pedem tempo e são complexas, é verdade, mas enquanto isso as pessoas nas áreas de risco devem ser protegidas e tratadas com dignidade. Afinal, a vida do povo pobre do Recife importa.