Fernando Marcelino, neto do militante, poeta e escritor Walmor Marcelino, tem se destacado pelas elaborações no marco da esquerda, pelo estudo com afinco da caracterização da China, com ênfase no tema do planejamento estatal e do socialismo com características chinesas, apontando a abertura para desenvolvimento do mercado a partir da direção do Partido Comunista Chinês.
Sua condição de elaborador inserido em um movimento popular de Curitiba – o Movimento Popular por Moradia (MPM) -, também contribui para uma análise geral, mas que alcança o concreto pensado, ou seja, não é uma elaboração em si mesma, e Marcelino ainda traz também contribuições importantes sobre a luta urbana em Curitiba.
A seleção de artigos que dá origem ao livro com o título instigante de “Para onde vai a esquerda? (Kotter editorial, 2024)” reúne seis peças com os desafios da esquerda brasileira, latino-americana e mundial neste período histórico. Temas que vão da reflexão sobre os desafios do chamado “novo progressismo latino-americano”, passando pela análise sobre os fatores que levaram à ascensão da extrema-direita mundial, encontrando os elaboradores de sua estratégia desde o século vinte, mas também identificando quais são as brechas da esquerda que permitiram o desenvolvimento da extrema-direita (Marcelino não usa a denominação neofascismo).
O centro do raciocínio de Marcelino é que a a ascensão da extrema-direita na realidade de vários países conjuga-se com o fato de a esquerda já não consegue apresentar propostas concretas e tampouco dialoga com as condições econômicas, e também culturais e subjetivas, da população e da massa trabalhadora e média.
Marcelino aponta que a esquerda ficou refém de um projeto que é intelectualizado, avesso às massas populares, e adere a uma série de pautas importantes sem, contudo, fazer a crítica ao modelo neoliberal. Na esquerda, é consenso hoje a importância de lutas nas frentes antirracista, antilgbtfóbica, de mulheres, indígena, entre outros temas, são fundamentais, sobretudo no marco da formação social brasileira. A provocação de Marcelino é, porém, sobre quando essas defesas não envolvem as grandes massas, não tocam no tema e nas preocupações de uma camada de trabalhadores urbanos, e não vem em conjunto com a crítica ao modelo neoliberal.
Para Marcelino, então, o neoliberalismo se afirma no desmonte da estrutura do Estado, suas políticas e investimentos. No entanto, a esquerda não apresenta alternativas no marco desenvolvimentista, ou sequer busca se apropriar e entender as características da experiência chinesa – as duas únicas contraposições possíveis neste momento, na avaliação do autor.
Nesse contexto, Marcelino identifica bem o desgaste – muito perceptível na América Latina, diga-se -, da institucionalidade e da democracia representativa, hoje completamente amarrada ao modelo neoliberal. A insatisfação das massas populares, desde os anos 90, derrubou uma série de governos em nosso continente, e a alternativa a eles não necessariamente conseguiu recompor um tecido de direitos sociais e econômicos. Inicialmente, a reação foi progressista, aberta por Chávez na Venezuela. Desde 2015, o conservadorismo tem sido o polo atrativo da indignação.
“A burguesia "globalista", aquela que hoje impulsiona o processo de transnacionalização do capital, ainda não saiu da crise, de sua crise. Ao contrário, o neoliberalismo, convertido atualmente em sua política, mostra cada dia mais seu caráter de beco sem saída, forçando o capital transnacionalizado a redobrar seus ataques contra os assalariados das formações desenvolvidas e os povos do Sul. Em um cenário no qual a política "mainstream" se tornou instável, seja por meio da dessintonia entre governantes e governados, partidos e eleitores, ou por aparentar ter se convertido em corrupta e elitista, o nacional-populismo se torna uma alternativa viável para aqueles que não se identificam com o "establishment", pois apresenta um discurso atrativo que tem por base a ideia de diálogo com o povo, propondo dar voz a essas pessoas que não”, página 35.
A extrema-direita representa, para Marcelino, a reivindicação de setores nacionais impactados com a globalização neoliberal, enquanto “o globalismo” as frações que defendem a exploração do capitalismo financeiro e mundializado.
“Alain Bihr aponta que uma das vertentes da extrema-direita é de movimentos nacionalistas que lutam contra o enfraquecimento dos Estados-nação pelas políticas neoliberais: contra a liberalização da circulação internacional do capital, a desregulamentação dos mercados, a perda por parte dos Estados de sua capacidade anterior de regulação da vida econômica e social em beneficio das instâncias supra ou transnacionais, a deterioração da coesão nacional como consequência do agravamento das desigualdades sociais e espaciais, etc. Estes movimentos reúnem ou procuram reunir classes, frações de classe e estratos sociais que estão entre os "perdedores" da mundialização neoliberal ou que temem fazer parte dela: elementos da burguesia cujos interesses estão vinculados ao aparelho de Estado nacional e ao mercado nacional; as "classes médias" tradicionais; elementos dos assalariados vítimas da mundialização neoliberal”, página 35.
Com isso, as alternativas atuais não recebem a caracterização e construção devida das organizações revolucionárias. O desenvolvimentismo e o socialismo de mercado muitas vezes são desprezadas pela academia e algumas organizações. Como proposta, Marcelino defende que é preciso recuperar o papel do Estado, desagregado e atacado durante o neoliberalismo.
No caso estadunidense, essa análise de Marcelino e o impacto nas frações de classe se caracterizam bem, vide a ascensão e a base social de Trump. No caso de outros países e do Brasil, é fato que há uma série de variantes. Se, por um lado, Marcelino aponta bem a crítica de que o marxismo torna-se refém do "globalismo" enquanto pensamento neoliberal, por outro o autor ignora que esse movimento de mundialização do capital não anulou a presença de interesses próprios nas frações de classes na realidade de cada país.
Em outras palavras, a existência de uma burguesia interna, como Armando Boito resgata o conceito em Poulantzas (BOITO, 2018), o que no Brasil configurou-se na experiência dos governos do PT, que representaram os interesses centrais dessa fração de classe, o que traduz-se no fato de que os governos petistas não podiam nem ser classificados como neoliberais (como muitas organizações de esquerda o fizeram), mas tampouco apresentaram um programa que rompeu com o marco neoliberal.
A possibilidade da esquerda neste cenário de apoio necessário ao governo de composição para enfrentar o neofascismo; ao lado da crítica ao neoliberalismo e a busca de avanços nas pautas desenvolvimentistas, conjugada com a construção paciente de um programa de frente popular. Em outras palavras, unidade e luta. O que certamente não é indiferente ao autor.
Marcelino está certo em apontar que a base na qual esse projeto de extrema-direita se debruça – no caso dos assalariados e das massas populares – certamente não são fascistas ou sequer têm elaboração sobre esta questão. O termo "pobre de direita" e a forma como a esquerda lidou com o conservadorismo popular até hoje traz resultados negativos para a organização popular.
O que arrebanha essa base social é o descontentamento com um Estado neoliberal que não supre suas necessidades mais imediatas e também estruturais. No entanto, é certo, governos como o de Bolsonaro – aqui numa avaliação pessoal – conjugaram direção e medidas neofascistas e um programa neoliberal herdado de Temer, o que gerou um período de coesão das frações burguesas durante parte do seu governo. O governo Bolsonaro não foi nacional, apenas no discurso, buscou privatizar e aumentar a exploração dos trabalhadores. Mas gerou dissidências que viriam a conformar a frente ampla a partir das eleições de 2022.
De fato, a esquerda mundial, no início dos anos 2000, capitaneava todas as lutas contra o capitalismo neoliberal e suas instituições – OMC, FMI, Banco Mundial. Em que pese a ferocidade do imperialismo em vinte anos, com invasões a uma série de países no Oriente Médio, Norte da África e agora no coração da Europa, a esquerda deixou de lado esses debates, sobre questões fundamentais para a luta de classes – imperialismo, sujeito político da revolução, Estado e poder, método materialista histórico e dialético são termos quase mortos para a esquerda no geral. Há debates que é preciso que sejam reabertos.
Um olhar sobre a América Latina
Sobre os novos governos progressistas, num ciclo nitidamente mais limitado comparado à chamada “primeira onda rosa no continente”, entre 2003 e 2015 mais ou menos, Marcelino nota bem como governos com vitórias recentes, caso de Lopez Obrador no México, Castillo no Peru (derrubado no primeiro ano), Petro na Colômbia, trouxeram um tom de melhorias econômicas e populares, ainda que não tenham priorizado outros temas, ou mesmo sejam considerados “conservadores” nos temas que a esquerda e a universidade têm priorizado hoje em dia.
Além disso, o ascenso de novos governos de esquerda se dá em conjuntura muito mais limitada para avanços. “Aqueles que assumiram na primeira Onda Rosa tiveram uma margem de votos muito maior, muito mais confortável. As suas populações, àquela época, não estavam com tal nível de polarização e crise social”, afirma.
A avaliação sobre a conjuntura em El Salvador me parece precipitada, inserindo o governo Bukele neste marco, na medida em que Bukele tem aprovação e medidas populares no tema da segurança, porém rompeu com a esquerda e tem na sua construção justamente a desconstrução dela – essa desconstrução não poderia caracterizar um governo progressista, ainda mais em um país com a cultura organizativa da Frente Farabundo Martí.
Outra discordância que eu teria com o trabalho é a menção à Gramsci bastante en pasant, de certa forma desidratando componentes centrais na obra do revolucionário italiano – o que não é responsabilidade apenas de Marcelino. O legado leninista, o tema do poder, a centralidade da construção junto à classe trabalhadora que predominou nos trabalhos entre 1919 e 1926 são questões que precisamos levar sempre em conta ao falar de Gramsci.
À esquerda e à direita, de certa forma Gramsci é citado como um certo esquema desidratado, desprovido da sua energia, história e conteúdo. Ainda que, sim, seja imprescindível para a esquerda repensar seu trabalho formativo, de agitação e propaganda no marco de um projeto de poder.
São ponderações. Nada disso tira a ousadia do trabalho e a provocação necessária dos artigos do livro de Fernando Marcelino. É um livro-provocação ao debate. Após a derrota estratégica sofrida pela esquerda brasileira em 2016, derrota de uma estratégia de chegada ao governo sem a construção de uma perspectiva de poder, o trabalho de Marcelino se insere numa preocupação de longo eixo sobre qual é a nova estratégia para a esquerda brasileira – latino-americana e mundial. As respostas são dolorosas e difíceis.