O primeiro semestre de 2024 foi marcado por greves nas redes estaduais e municipais de educação em todas as regiões do país. Em algumas delas, as reivindicações extrapolaram as questões salariais e de carreira, principalmente no Paraná e em São Paulo, cujas mobilizações se voltaram, fundamentalmente, contra as políticas de privatização da educação pública.
No Paraná, a greve (3 a 5/06) foi contra a proposta do governo de conceder a gestão das escolas públicas a empresas privadas. Em São Paulo, “a greve dos aplicativos” (13 a 19/05) teve como foco a luta contra a implementação de plataformas digitais de aprendizagem.
Apesar de não terem se prolongado, esses movimentos foram fundamentais para denunciar o caráter privatista das políticas educacionais adotadas por diversos estados e prefeituras. No Paraná, a força do movimento forçou os parlamentares governistas a se refugiarem, não no camburão da PM tal qual o 29 de abril de 2015, mas, sim, em uma sessão online. A aprovação do projeto de privatização da gestão das escolas estaduais foi mais um passo na transferência de dinheiro público para o empresariado. Muito mais avançado, entretanto, está o processo de imposição de plataformas digitais de aprendizagem (PDA).
Essas plataformas vêm sendo anunciadas e impostas como o principal, e não raras vezes único, mecanismo capaz de solucionar os problemas vivenciados na educação pública, tais como abandono, desinteresse, etc. Nas escolas, no entanto, o que se tem verificado, inclusive por meio de relatos dos próprios estudantes, é que o abandono escolar está muito mais relacionado à migração, trabalho, falta de vagas em escolas próximas ao local de moradia, gravidez e maternidade, violência urbana, na escola e doméstica, deslegitimação do papel social da escola e do professor, reforma do Ensino Médio, carência material, dentre outros.
Sendo estes os principais problemas que levam os estudantes a abandonar as salas de aula, como a imposição das PDA dialoga com a realidade escolar? Não dialoga! Tal política está muito mais relacionada à lógica privatista em favor do lucro. À juventude, resta, cada vez mais, amargar, quando não o desemprego, os trabalhos altamente precarizados.
Entre a manipulação de resultados e o excesso de atividades digitais
Nas salas de professores das escolas estaduais cresce um misto de desestímulo, angústia, indignação e descrença, associado, também, à plataformização da educação. Há um desconforto frente à constatação de que tais plataformas não garantem a aprendizagem dos alunos, esvaziam os conteúdos das disciplinas, provocam tensões desnecessárias entre alunos e professores e impactam negativamente para o ambiente de trabalho.
Da mesma forma, crescem os relatos indignados de muitos docentes atestando a engenhosidade dos estudantes em burlar as plataformas. Ressalte-se que a indignação não é pela burla, mas sim, pela constatação de que as PDA estão corrompendo o processo pedagógico.
Muitos alunos, quando no laboratório de informática, sentam-se em grupos e, no momento de responder as questões de múltipla escolha, cada um deles marca uma alternativa diferente e aquele que acertar fala a alternativa correta para a turma toda. Outros, utilizam a busca por imagem para encontrar, via google, a resposta correta, para depois assinalá-la na plataforma. Há, também, aqueles que simplesmente boicotam, principalmente por não verem sentido. Há, ainda, estudantes que não acessam as plataformas por não terem os equipamentos necessários ou por falta de acesso à internet, ou, igualmente, por falta de tempo, pois não são poucos os que trabalham.
No ano passado circulou pelas redes sociais, numa versão atualizada de “Não sois máquinas, homens é o que sois”, um conjunto de postagens nas quais os estudantes paranaenses denunciavam suas angústias e sofrimentos em relação ao excesso de plataformas digitais bem como de atividades a serem realizadas. Nos comentários, alunos destacaram, ainda, diversos problemas na utilização das plataformas, entre elas a necessidade de refazer várias vezes a mesma atividade.
Paraná na contramão dos melhores exemplos
Enquanto aqui no Paraná se intensifica a submissão do processo de ensino aprendizagem à plataformização digital, uniformização e controle das atividades docentes, alguns países, pioneiros na introdução de tecnologias de informação e comunicação na educação, começam a abandonar o modelo, iniciando pelo banimento de celulares das salas de aulas.
A França, por exemplo, proibiu o uso de celulares por alunos menores de 15 anos em todas as dependências escolares já em 2018. Na Holanda, a medida não se restringiu apenas aos celulares. A partir deste ano, tablets e relógios inteligentes (smartwatch) também serão proibidos.
Dentre os objetivos de tal medida, busca-se afastar as distrações trazidas por esses aparelhos. Uma semana antes deste anúncio, a Finlândia, sempre citada, pelo ex-secretário de Educação do Paraná, Renato Feder, como exemplo de melhor educação do mundo, apresentou decisão semelhante.
A Suécia, que desde 1990 intentava massificar a informatização de materiais didáticos e as aulas, anunciou, em 2023, a sua completa substituição por livros didáticos impressos. Dentre os motivos que impulsionam essa ação, destaca-se a queda no desempenho das crianças em leitura; as críticas de especialistas em saúde em relação ao aumento do uso de telas; dificuldade maior de os pais ajudarem os filhos nas tarefas; evidências científicas que mostram os benefícios do livro físico para o desenvolvimento cognitivo dos alunos.
Outro exemplo bastante ilustrativo da urgente necessidade de banir as telas das salas de aula, vem das escolas do Vale do Silício. A região, localizada na Califórnia (EUA), é o epicentro da economia digital, onde se localizam muitas das principais empresas globais de tecnologia, dentre elas Google, Apple, Meta, HP, Intel, Samsung, Netflix, Uber, Microsoft, Adobe, e muitas outras mais. Lá, as escolas privadas nas quais estudam os filhos e filhas desse empresariado, estão, da mesma forma, proibindo o uso de celulares no ensino fundamental (elementary e middle school).
Educando para a passividade e para o consumismo
As situações destacadas acima colocam uma reflexão fundamental sobre o modelo de educação que vem sendo imposto para os filhos da classe trabalhadora no Paraná, sobretudo quando se compara com as escolas do Vale do Silício.
Lá, os filhos e filhas de empresários e trabalhadores mais qualificados estão sendo educados para se apropriar de conhecimentos significativos para sua vida e, principalmente, para produzir tecnologia.
No Paraná, ao contrário, educa-se para criar um exército passivo de consumidores de tecnologias, aos quais lhes são incutidas a falsa ideia de que a simples utilização alienada das TICs, baseada na mera reprodução de informações, sem espaço para a criatividade e a inovação, será capaz de lhes garantir o futuro ingresso no mundo do trabalho.
É preciso questionar, então, por que aqueles que produzem e entendem a tecnologia dos celulares e dos aplicativos não querem seus filhos expostos às telas antes de chegarem ao Ensino Médio?
Esse uso, limitado à reprodução de modelos impostos, sem reflexão sobre seus impactos na aprendizagem e na saúde, vendido pela mídia como sinônimo de qualidade, reproduz a ideia incorreta de que aqueles os quais não fazem uso das novas tecnologias ficarão obsoletos, ultrapassados.
Se isso é verdade, por que os alunos do Colégio da Polícia Militar do Paraná, com sede em Curitiba e igualmente subordinado ao governo do Estado, não são submetidos às tais plataformas como nas demais escolas? Por que no CPM os professores têm autonomia para determinar quando irão utilizá-las? Por que apenas esporadicamente professores de Inglês e Matemática recorrem às plataformas? Talvez, porque, os filhos e filhas de militares e outros favorecidos, não estejam sendo educados para serem meros consumidores de tecnologia ou peões, susceptíveis a toda ordem de desmandos.
Esses questionamentos são melhor ilustrados por uma pesquisa divulgada em 2019 atestando que crianças de até 8 anos de idade, que compõem as camadas mais baixas nos EUA são justamente as que passam mais tempo em frente às telas. Enquanto os filhos das classes mais altas passavam, em média, 1h 50m por dia, os filhos das camadas mais baixas ultrapassavam 3h por dia em média, segundo dados de 2017. Adolescentes de famílias de baixa renda gastavam em 2017 duas horas e 45 minutos por dia a mais do que os filhos das classes altas. Outra pesquisa revelou que, também nos EUA, as crianças brancas passam menos tempo em frente às telas do que negras e hispânicas.
O Brasil não é exceção à regra. Pesquisas sobre o uso da internet por crianças e jovens brasileiros reproduzem o mesmo padrão de outros países. Enquanto essa situação não for alvo de políticas públicas e campanhas de conscientização, alunos e alunas das redes públicas continuarão submetidos ao bombardeio da cultura da obsolescência programada, incentivando o descarte constante de dispositivos, a busca incessante por novidades e indefesos a “oferta contínua de pequenos prazeres”, o que contribui para redução do receptores de dopamina, acarretando mudanças de humor, irritabilidade e ansiedade.
A nós, professores e professoras, que sabemos o que estamos fazendo em sala, que dedicamos grande parte de nossas vidas ao estudo e à garantia do direito à educação pública, de qualidade e transformadora, cabe a denúncia firme e intransigente, de que a imposição das PDA, além de não solucionar os problemas relacionados ao abandono escolar e nem garantir aos estudantes a inserção no mercado de trabalho, tem afetado negativamente tanto a aprendizagem quanto a saúde mental de nossos alunos e alunas.