Uma cena bastante preocupante vem se tornado cada vez mais comum. Ao adentramos em locais públicos, restaurantes, até mesmo em parques e praças, deparamo-nos com crianças, desde a mais tenra idade até a pré-adolescência, com algum dispositivo móvel em suas mãos. Celulares e tablets estão sendo utilizados, pelos pais, como mecanismo para prender a atenção de seus filhos enquanto se dedicam às suas tarefas ou lazeres.
Estes dispositivos, no entanto, não vêm acompanhados de manual direcionado aos pais alertando sobre os impactos negativos na saúde mental de seus filhos e filhas. Situação agravada na pandemia de Covid-19, continuada no pós-pandemia e impulsionada sobremaneira pela plataformização da educação imposta por diversos governos que estão interferindo na decisão de pais, mães e responsáveis sobre a forma e o conteúdo de acesso às TICs.
Diversas pesquisas acerca dos impactos negativos das telas em crianças e adolescentes estão sendo divulgadas. Uma delas, publicada em 2019, revelou que, quanto maior o tempo de tela entre crianças de 2 e 3 anos de idade, maior é o atraso em atingir marcos importantes do desenvolvimento cognitivo dois anos depois. No Brasil, 47% das crianças entre 0 e 8 anos de idade passam mais de três horas em frente a algum tipo de tela. O uso de tablets e smartphones por crianças e adolescentes acima das duas horas diárias está associado, também, à falta de sono, impactando negativamente na capacidade de cognição e no desempenho acadêmico. Para crianças da pré-escola, cada hora de tela diminui 26 minutos de sono.
Outro estudo destacou que a simples presença do celular produz desatenção em crianças e adolescentes. De acordo com a pesquisa, o simples fato do celular estar na mesa, no bolso ou em outro cômodo é o suficiente para tirar a atenção dos alunos, resultando em menor aprendizagem, baixo desempenho nas avaliações escolares e em notas mais baixas.
Nesse contexto, a imposição do uso de plataformas nas escolas estaduais por parte do governo representa uma grave afronta à saúde e à aprendizagem de nossos filhos. O governo age em consonância com o mercado, criando, por um lado, um cenário em que tanto pais quanto educadores sentem-se pressionados a adotar as TICs sem uma análise crítica dos seus impactos, e, por outro, fortalece a falsa ideia de que quem não tiver acesso a toda essa parafernália estará descartado, obsoleto, ultrapassado.
Toda essa dinâmica contribui para um uso indiscriminado de smartphones e tablets, em detrimento do bem-estar das crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, desrespeita a decisão daqueles pais que tentam postergar ao máximo o contato de seus filhos com tais tecnologias. O que o governo faz, ao contrário, é reforçar a ilusão de que o uso das TICs representa a solução para todos os problemas da educação, desconsiderando as evidências científicas que demonstram os impactos negativos no desenvolvimento e na aprendizagem dos estudantes, e desrespeitando a autonomia das famílias e das escolas para decidir sobre a melhor forma de ensinar e aprender.
Os impactos negativos das TIC’s na saúde dos estudantes
O Brasil ocupa a segunda posição entre os países cuja população de 16 a 64 anos de idade passa mais tempo conectada. Ao mesmo tempo, outros estudos apontam para a relação entre o uso de telas e o aumento de doenças, síndromes e, inclusive, suicídios.
Um dos estudos mais recentes revelou que o número de alunos que se sentem sozinhos nas escolas ultrapassou aqueles que se sentem pertencentes à instituição. Da mesma forma, os estudantes mais viciados nas telas são os mais deprimidos e solitários. Essa situação não é por acaso. O vício em tais aparelhos está produzindo um novo fenômeno denominado desprezo telefônico, quando numa conversa, um dos interlocutores verifica ou utiliza constantemente seu celular. O outro, sentindo-se pressionado, passa a pegar seu telefone e, quanto menos se espera, a escola está repetindo esse comportamento.
Há um conjunto de pesquisas chamando a atenção para o desenvolvimento de problemas físicos como dores de cabeça, no pescoço e nas costas, fadiga ocular e síndrome do túnel do carpo. Além disso, o uso excessivo de telas tem sido associado à alimentação menos saudável, à obesidade e ao sedentarismo. Um pesquisa divulgada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) analisou 1 396 crianças de 7 a 14 anos e constatou que jogar ou assistir a vídeos à noite levava essa população a consumir menos alimentos saudáveis, como frutas e verduras, e mais ultraprocessados, industrializados ricos em sal, açúcar e gordura.
A desumanização da Educação
A crescente imposição das tecnologias digitais na educação, marcada pela intensificação da plataformização do ensino e da aprendizagem, tem levantado diversos questionamentos sobre os impactos desse processo na qualidade e na garantia do direito à educação. A padronização dos conteúdos, a diminuição do papel do professor e a precarização das condições de trabalho são apenas algumas das consequências dessa transformação.
A padronização dos currículos, impulsionada pela utilização de plataformas com materiais prontos e padronizados, restringe a flexibilidade e a capacidade de adaptação às necessidades individuais dos alunos. A imposição de um currículo único, desconsiderando as especificidades locais e culturais, compromete a relevância da aprendizagem e dificulta o desenvolvimento de habilidades críticas e criativas nos estudantes. A ênfase em atividades repetitivas e mecânicas, como as oferecidas pelas plataformas, inibe a capacidade dos estudantes de analisar, sintetizar e resolver problemas de forma autônoma. Em síntese, a submissão da educação às plataformas digitais de aprendizagem desqualifica o processo educativo, negando aos estudantes a oportunidade de desenvolverem atributos fundamentais para que se percebam na qualidade de sujeitos, agentes de seu próprio futuro.
A plataformização também tem um impacto significativo no papel do professor, reduzindo-o a um mero executor de tarefas. A subordinação ao sistema, a perda da interação pessoal e a impossibilidade de lidar com as individualidades dos alunos (situação que há algum tempo já não tem sido possível em razão da superlotação das salas e do crescente número de alunos que necessitam de acompanhamento especializado mas que o Estado não concede), são consequências dessa transformação.
A utilização de plataformas e a imposição de materiais prontos limitam a autonomia e a criatividade do professor, dificultando a construção de um ambiente de aprendizagem mais significativo, restringindo as possibilidades de adaptar os conteúdos ao ritmo de seus alunos. Ao contrário, quanto mais se impõe metas para a utilização das plataformas, mais conflituosa tem se tornado a relação entre alunos e professores, bem como o trato entre estes as direções de escola.
Outro aspecto preocupante é a desconexão com a realidade e os interesses dos alunos. A utilização de conteúdos prontos e padronizados tem acarretado em um ensino descontextualizado, que não dialoga com as vivências e realidades dos estudantes. Isso dificulta o engajamento e a motivação dos alunos, que acabam se distanciando de conteúdos mecanicamente transmitidos e, muitas vezes, percebidos como desnecessários. Além disso, o ensino automatizado e a ausência de personalização promovem uma relação passiva com o conhecimento, onde os alunos são incentivados a reproduzir informações, ao invés de questioná-las e transformá-las em saber crítico.
A saída está na luta coletiva
Desde a derrota do magistério em 2015 temos amargado um conjunto de perdas que nos fazem refletir, todos os dias, se seremos capazes de resistir aos novos ataques que se avizinham. De lá para cá, perdemos parte de nossa hora atividade, tivemos retrocessos em nossa carreira, imposição da política de bonificação e punições por ficarmos doentes, além de prova para os professores temporários, assim como para os efetivos garantirem a promoção. Nossa previdência foi assaltada e muitas escolas privatizadas ou militarizadas. A escolha das direções de escola perdeu todo o seu caráter democrático, ao mesmo tempo em que as instâncias consultivas e deliberativas das escolas se tornaram meras formalidades burocráticas, pantomimas, sem sentido em sua existência.
O primeiro e decisivo passo para começar a frear as investidas privatistas contra a educação pública e à nossa carreira é estabelecer um diálogo fraterno com a comunidade escolar, ouvindo suas demandas em relação à educação que querem para seus filhos, mas, também, desmascarando o modelo de educação que vem sendo imposto no Paraná. Modelo este que se configura como um obstáculo à educação e ao futuro de seus filhos, que deslegitima o papel do professor e desacredita a escola pública.
Esse enfrentamento terá mais êxito quanto maior e mais estreita for nossa ligação com a comunidade escolar. A defesa da escola pública, como um direito garantido pelo Estado, precisa ultrapassar o nosso corporativismo e se aliar com os movimentos populares que igualmente a defendem. As resistências individuais são importantíssimas, porém se esgotam, quase sempre, nos limites da escola. Essa luta precisa ser coletiva, vinculando nossos interesses mais imediatos aos interesses imediatos da comunidade escolar, para, juntos, iniciarmos uma caminhada que nos leve a superar todo o conjunto de medidas antipopulares impostas pelos sucessivos governos.
Leia outros artigos de Rossano Rafaelle Sczip em sua coluna no Brasil de Fato PR
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.