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Deve a escola pública ser voltada para a produção do lucro?

A educação carrega a semente da transformação

Em texto recentemente publicado levantei uma questão sobre a plataformização da educação e seus impactos negativos nas condições de vida e trabalho dos trabalhadores e trabalhadoras em educação das escolas públicas brasileiras. Situação gravíssima que se expande em ritmo acelerado pelas diferentes redes de ensino do país.

A pergunta tinha por objetivo instar não só os docentes, submetidos diretamente à sanha expropriadora das grandes empresas de tecnologia e informação, mas o conjunto da sociedade, sobretudo os pais e as mães dos nossos alunos. Quando questionei “quem pagará o professor pela produção de dados?” foi justamente para apresentar um problema: o uso intenso de ferramentas digitais ditas de aprendizagem está resultando em horas de trabalho para além da jornada de trabalho pela qual professores e professoras foram originalmente contratados.

Trata-se, portanto, de trabalho realizado e não pago. O estreito limite de tempo destinado a nossas horas-atividade, destinadas a preparar aulas, corrigir atividades e, se possível estabelecer diálogos com o setor pedagógico, tem se voltado, cada vez mais, para a produção de dados mediante a constante e infindável tarefa de alimentação das plataformas digitais. Tal situação tem levado inúmeros professores e professoras da rede estadual do Paraná, sobretudo aqueles responsáveis pela interface digital de redação, a ocuparem seu tempo livre, da família, do descanso, de atividades culturais, com o enfadonho checklist em textos montados através do infalível Crtl+C/Crtl+V.

Ao reler o texto e conversar com interlocutores, deparei-me com outra questão. A problemática original carrega em si a pergunta título deste texto, o qual seria impensável sem as reflexões, em particular, de uma camarada também professora.

Poderia ter optado por um título mais explícito como "A submissão sem disfarces da educação pública à lógica privada da mercantilização e do lucro". Ambos me conduzem, igualmente, a reflexões semelhantes: a contradição da educação nos marcos da sociedade capitalista. Ela é, ao mesmo tempo, reprodutora das condições políticas e ideológicas do sistema, e potencializadora da crítica dialética emancipatória do indivíduo e da coletividade.

As contradições da educação pública no capitalismo

A educação no e do capitalismo tende a ser estruturada para atender às demandas de um sistema que prioriza a reprodução das relações de produção e o controle social, enfatizando a formação de mão-de-obra para sustentar a lógica do lucro e da competitividade. Nesse contexto, os processos educativos são frequentemente moldados para garantir conformidade, disciplina e adaptação dos indivíduos às exigências do mercado.

Por outro lado, a educação para a emancipação propõe uma ruptura com essas lógicas, visando o desenvolvimento crítico e autônomo dos indivíduos. Ao invés de formar para a adequação, ela busca transformar a realidade, capacitando os sujeitos a questionar, resistir e promover mudanças sociais profundas, ligadas a valores de justiça, solidariedade, liberdade e igualdade. Assim, enquanto a primeira submete o indivíduo aos ditames da exploração e da desigualdade, a segunda é pensada como um caminho para a transformação e para a superação das desigualdades estruturais.

A submissão sem disfarces da educação pública à lógica privada do lucro e da competitividade, vem sendo fortalecida nos últimos anos em consequência da reforma do ensino médio imposta por Michel Temer, em 2016, prosseguida por Bolsonaro e mantida, quase intocada, por Lula em seu terceiro mandato.

A contrarreforma do ensino médio

O desmonte da grade curricular, mediante imposição de um currículo nacional único, centrado nas habilidades de escrita e cálculo, desrespeitando as particularidades de cada estado, cidade, comunidade, alinhado às avaliações externas, cujo objetivo é verificar a apreensão das competências específicas pelos estudantes, somados à ampliação do tempo escolar, que exclui as juventudes trabalhadoras, conquistam, a passos largos, uma formação para a adequação dos estudantes às exigências do mercado de trabalho.

Essa reforma, protagonizada pelo setor empresarial através de diversos institutos e fundações privados, tais como Lemann, Todos Pela Educação, Ayrton Senna, etc., ancorada em seus três pilares (currículo, avaliação externa e ampliação da jornada), busca eliminar a diversidade não só do conteúdo, mas dos corpos, e priorizar disciplinas de cunho técnico e profissionalizante. 

A formação crítica e humanista, por sua vez, vê-se diante da redução de sua carga horária quando não há duas, a quatro aulas ao longo do ensino médio e dos anos finais do ensino fundamental. Diminuída ou mesmo extinta a carga de disciplinas como História, Filosofia, Geografia, Artes e Sociologia, a educação pública vai ceifando a reflexão e a autonomia intelectual. O modelo de ensino que emergiu dessa reestruturação promove a fragmentação do conhecimento, estreitando o foco da educação às demandas do mercado, em detrimento de uma educação ampla e emancipatória, capaz de formar cidadãos críticos e ativos em uma sociedade que parece em marcha acelerada rumo ao fascismo.

A reforma do ensino médio de Temer, prosseguida por Bolsonaro e mantida quase intocada por Lula (apesar da esperança da revogação durante a campanha eleitoral de 2022), se alinha à privatização e militarização das escolas.

Precarização das condições de vida e trabalho

No Paraná, a privatização da gestão das escolas estaduais representará a transferência de R$ 2 bilhões de reais, por ano, de dinheiro público para empresas privadas. Se esse montante fosse destinado à valorização dos trabalhadores e trabalhadoras da educação e à reforma das escolas para torná-las um ambiente saudável e adequado ao processo ensino aprendizagem, seu resultado seria, acertadamente, a melhoria da qualidade socialmente referenciada da nossa educação. 

A aposta de Ratinho Jr., entretanto, aponta para o favorecimento daqueles que o financiam na usurpação do público em favor do privado. O resultado dessa política será, inevitavelmente, o aumento da desigualdade social, pois o seu “Parceiros da escola” retira dinheiro do contribuinte, que deveria ser destinado para manter a educação pública de gestão pública e civil, laica e gratuita.

A militarização, por sua vez, ao conduzir militares da reserva às escolas estaduais do Paraná, promove outro assalto aos cofres públicos, gratificando os agraciados do governo em R$ 3.500 reais a mais em suas já robustas remunerações. O gasto com estes militares ultrapassa os R$ 36 milhões por ano.

Do outro lado estão os trabalhadores e trabalhadoras da educação, com uma média de 40% de defasagem salarial, cortes no salário em razão da remuneração atrelada a metas inalcançáveis, punições em caso de afastamentos para saúde, proibição aos PSS de acompanharem seus filhos e filhas a consultas médicas ou mesmo em casos de internamento e com intensificação do trabalho e extensão da jornada em razão da plataformização da educação.

O resultado dessa política de precarização, sobretudo do trabalho docente, e consequente desmonte pedagógico da educação, onde o corpo docente é atacado em sua autonomia e o setor pedagógico obrigado a agir como um capaz a cobrar as metas inalcançáveis, vemos os transtornos mentais e comportamentais dos trabalhadores e trabalhadoras da educação alcançar índices alarmantes.

E é aqui que este texto se encontra com o anterior. A educação sob o capitalismo é um mecanismo de adaptação das classes subalternas à ordem estabelecida, moldando subjetividades que naturalizam a desigualdade e a exploração. No entanto, os espaços e as possibilidades de resistência a partir de dentro tinham uma potencialidade mais efetiva. Agora, a esse conjunto de políticas de desmonte da escola pública e de precarização das condições de trabalho e vida daqueles que nela atuam e nela estudam, soma-se o controle direto, sem disfarces, da escola pública dos integrantes do aparato repressivo do Estado e dos responsáveis primeiros pela nossa exploração e expropriação. 

Para que servem as escolas públicas?

A educação carrega a semente da transformação, pois, ao fornecer conhecimento e promover o pensamento crítico da realidade social, pode ser um meio de libertação. Quando orientada para a conscientização das condições de exploração e das contradições do sistema, a educação se torna um espaço de resistência e de construção de novas formas de organização social. Nesse sentido, ela tem o poder de questionar e transformar a realidade, oferecendo aos indivíduos as ferramentas necessárias para compreender e alterar as estruturas que os oprimem.

Se resta alguma dúvida, é preciso dizer com todas as letras: a escola pública não deve curvar-se ao altar do lucro, pois sua essência é a de um farol que ilumina caminhos, e não uma fábrica a serviço do mercado. Ela é uma oficina de ideias, aprisionada pelo capital, mas capaz de forjar ferramentas de libertação. É como um campo de batalha, onde a consciência crítica luta para romper as correntes da dominação. É a sementeira de emancipação, onde florescem sonhos além da lógica do mercado. É a guardiã do "conhecimento poderoso", um tesouro que transcende o imediato e o utilitário. A escola pública é o farol que ilumina os caminhos da justiça e da igualdade, cada vez mais obliterado pela densa névoa do mercado que busca leiloar o futuro de muitos para enriquecer os poucos.

 

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