Em entrevista recente, a vice-governadora do Distrito Federal (DF), Celina Leão (PP-DF), apontou a saúde mental como uma de suas prioridades. Segundo ela, “[…] essa é a era da ansiedade. Essa é a era onde que [sic] as pessoas vivem o amanhã e esquecem de viver o dia de hoje”. De cara, notamos uma compreensão individualista sobre o que supostamente seria saúde mental, que, ao fim e ao cabo, culpabiliza as pessoas pelo seu sofrimento psíquico, desconsiderando os problemas que as acometem, que precarizam suas condições de vida e, consequentemente, a sua saúde mental.
É fácil para uma vice-governadora do DF, do alto dos privilégios de seu cargo e condições de vida, com um salário bruto de mais de R$ 52 mil, resumir o problema da saúde mental a deixar de viver o dia de hoje. Por exemplo, que presente é esse a ser vivido quando 47 mil domicílios, isto é, 128 mil pessoas, estavam em situação de insegurança alimentar grave no DF em 2024?
Como viver o dia de hoje com um déficit habitacional de mais de 100 mil residências e crescimento vertiginoso da população em situação de rua no DF? Como viver o presente, sendo que ele tem significado longas horas de prisão e claustrofobia em ônibus com preços abusivos e condições precárias, num contexto de falta de políticas de mobilidade urbana?
Na verdade, os problemas centrais de saúde mental que temos vão, justamente, na contramão do que a visão elitista e individualista de Celina exprime. Eles dizem respeito à falta de perspectiva ocasionada pela realidade presente de carências e precariedade. Eles remetem à dificuldade de se projetar um amanhã, sendo que o hoje é gasto quase que integralmente para a sobrevivência física; o trabalhar hoje para pagar a janta e sabe-se se lá o que comer amanhã.
Os problemas também se referem à impossibilidade de se pensar no dia seguinte porque o cansaço e esgotamento de hoje são tantos, que resta a boa parte dos trabalhadores do DF colocar a cabeça no travesseiro para um breve fechar de olhos, sem que se possa descansar e repor as energias para o próximo ciclo de desgaste.
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Ao falar sobre a saúde mental de servidores públicos do DF, a situação só piora. Segundo a vice-governadora: “Essas pessoas [servidores/as] precisam estar com a saúde mental equilibrada para cuidar das outras pessoas, vivem sempre em estresse absoluto, muitos problemas”. Ora, vice-governadora, por que será que servidores do GDF “vivem sempre em estresse absoluto, [com] muitos problemas”? Vamos parar para pensar um pouquinho.
Se é genuína a preocupação de Celina e de seu governo com a saúde mental de servidores, o GDF pode começar fazendo concurso público para uma série de políticas que carecem de profissionais, bem como para setores e categorias flagrantemente insuficientes no DF, como é o caso dos especialistas na saúde. Da mesma forma, o GDF pode melhorar as condições de trabalho e os salários desses servidores.
O governo também pode implantar mais serviços e fortalecer aqueles (parcos) que já existem, ao invés de privatizá-los, como tem sido a tônica do governo Ibaneis-Celina na saúde, assistência social e outras políticas sociais. Tudo isso pode contribuir para que servidores não vivam sempre em estresse absoluto.
É necessária uma drástica mudança política no GDF para que, de fato, a saúde mental seja uma prioridade e seja abordada como deve ser. É necessário mudar o GDF. Falas vazias, cheias de slogans podem colar para alguns, mas não resultam em mudanças concretas, muito menos impactam positivamente na vida da população do DF.
Nisso, não basta criar uma subsecretária de Saúde Mental, como foi feito em janeiro, se a política de saúde mental do GDF continua a mesma, andando na contramão do Sistema Único de Saúde, o SUS, e da Reforma Psiquiátrica. Por exemplo, já entramos no segundo mês posterior à morte de Raquel França de Andrade no Hospital São Vicente de Paulo, e nenhuma mudança concreta foi feita neste que é um manicômio público e ilegal há 25 anos.
Nenhuma das solicitações de entidades da Luta Antimanicomial do DF foi atendida até o momento. Entre elas, estão a substituição da Direção do HSVP e o fechamento da porta de entrada dos serviços, que é o Pronto Socorro, evitando que outras pessoas sejam colocadas em condições similares à de Raquel e permitindo que as investigações ocorram da forma mais imparcial possível.
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Soma-se a isso a falta de resposta da Secretaria de Saúde aos inúmeros pedidos de reunião – alguns, inclusive, de parlamentares –, a paralisação do processo de apresentação e desenvolvimento do Plano de Fechamento do HSVP, entre outras ações.
Só podemos concluir disso tudo que, apesar da retórica da vice-governadora, continua o descaso com a saúde mental do DF. Que possamos, no dia de amanhã, mudar radicalmente o cenário de hoje: da saúde mental e do DF como um todo.
Pelo fechamento imediato do HSVP!
Pelo fim dos manicômios!
Raquel, presente!
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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