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24 anos depois, por que a Lei da Reforma Psiquiátrica ‘não pegou’ no DF?

"Soma-se a isso o fato de o DF ter uma das piores coberturas de Caps de todo o Brasil."

No dia 6 de abril, completamos 24 anos da Lei 10.216, promulgada em 2001. Conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, ela “[d]ispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.

Apesar de sua relevância, a data nos rememora muito mais do que ainda temos que lutar, sobretudo no atual contexto de Contrarreforma Psiquiátrica. No Distrito Federal, por exemplo, em Dissertação de Mestrado, Suelen de Azevedo (2017) constatou que a Lei 10.216 é uma lei que não pegou, com inúmeros obstáculos explícitos e implícitos para a sua real efetivação na saúde mental distrital.

Não é nosso intuito fazer aqui uma análise extensiva ou conclusiva da implementação da referida Lei no DF. Queremos apenas citar dois pontos da Lei 10.216/2001 que, até hoje, 24 anos depois da sua promulgação, ainda não pegaram; isto é, continuam a ser desrespeitados.

Começamos pelo Artigo 2º, que versa sobre os direitos das pessoas assistidas na saúde mental. Poderíamos abordar todos os itens do Parágrafo Único, mas destacamos os seguintes parágrafos:

“VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental”.

De acordo com relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), de 2024, sobre o Hospital São Vicente de Paulo, o hospital psiquiátrico público do DF:

“[…] apesar de a SES-DF ter protocolos bastante detalhados e atualizados sobre os mais diversos procedimentos, como, por exemplo, a contenção mecânica, o treinamento para realizá-los é feito de modo informal com ‘os mais antigos da casa’. No caso do Protocolo de Manejo da Agitação Psicomotora Aguda, ficou evidente o distanciamento entre a prática e as diretrizes da SES-DF. Essa questão será aprofundada no tópico 3.6” (pp. 109/110, grifos nossos).

Além disso, foram observados “indícios de que o procedimento de imobilização de usuários/as por meio de sua contenção física esteja sendo usada como prática disciplinar no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), o que é vedado pelo Art. 3º da Resolução Cofen 427/2012” (p. 123). Poderíamos citar inúmeros outros trechos desse Relatório, e de outro publicado em 2018 também pelo MNPCT, além de outros documentos sobre o uso indiscriminado da contenção mecânica – e química – no HSVP, mas consideramos que o argumento aqui já foi evidenciado.

Soma-se a isso o fato de o DF ter uma das piores coberturas de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de todo o Brasil. Os Caps são os principais serviços comunitários de saúde mental da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), com uma atuação territorial, por meio do modelo psicossocial. Logo, em um cenário de baixa cobertura, com número bastante insuficiente de Caps e dos outros serviços comunitários da Raps, há uma tendência de concentração assistencial nos serviços hospitalares, indo na contramão do que a Lei 10.216 apregoa. 

Mas o caso do HSVP é ainda pior, pois não se trata “só” de um hospital psiquiátrico, um manicômio, mas de um serviço ilegal. Essa ilegalidade refere-se ao desrespeito à Lei Orgânica do DF (de 1993), à Lei Distrital 975/1995, mas também à Lei 10.216/2001. Vejamos o Artigo 4º, Parágrafo (§) 3º, que diz: 

“É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o”.

Ressaltamos que o desrespeito aos itens do Parágrafo Único do Art. 2º não se resumem aos dois pontos apontados acima. Logo, de acordo com o relatório do MNPCT sobre o HSVP, de 2024:

“As informações publicizadas neste relatório, coletadas durante a inspeção por meio da observação e diálogo com usuários/as e profissionais e, posteriormente, pela análise de documentos e registros do Hospital fornecidos pela SES-DF, permitem afirmar que o HSVP pode ser caracterizado como uma instituição asilar

Repetimos a conclusão do trecho supracitado: o HSVP pode ser caracterizado como uma instituição asilar (o grifo é do próprio relatório).

O caráter asilar-manicomial do HSVP não é questão de disputa, não é produzido por simples narrativas, mas algo factual, que diz da sua natureza como hospital psiquiátrico, ou seja, como manicômio.

Nem todo manicômio se parece com os manicômios de outrora. Muitos deles foram “reformados”. Contudo, ao serem hospitais psiquiátricos, continuam, na sua natureza (social) sendo manicômios, possuindo características asilares-manicomiais. Dessa forma, não há possibilidade de se reformar essa sua natureza. Resta fechá-los, superá-los.

Ademais, remetendo uma vez mais ao relatório do MNPCT (2024), na ocasião da inspeção, havia “12 usuários/as que se encontram residindo no hospital há mais de 12 meses”. Durante diligência realizada no HSVP, em janeiro de 2025, por conta da morte de Raquel França de Andrade, “havia 08 (oito) pacientes com mais de um ano de internação, contrariando o tempo de tratamento previsto e reiterando o caráter asilar a instituição”. 

Por fim, como mencionado, a manutenção do HSVP não desrespeita “só” a Lei 10.216/2001. Já falamos bastante nesta coluna sobre o desrespeito à Lei Distrital 975/1995. Queremos, então, negritar o Art. 211 da Lei Orgânica do DF, que diz:

“É dever do Poder Público promover e restaurar a saúde psíquica do indivíduo, baseado no rigoroso respeito aos direitos humanos e da cidadania, mediante serviços de saúde preventivos, curativos e extra-hospitalares”. 

Ora, acreditamos não ser necessário (re)argumentar como a manutenção do HSVP, enquanto serviços não só hospitalar, mas um hospital psiquiátrico – um manicômio – ilegal, por si só já vai na contramão do referido trecho. Contudo, os Parágrafos 3º e 4º tornam a situação ainda mais problemática. Vejamos:

“§ 3° Serão substituídos, gradativamente, os leitos psiquiátricos manicomiais por recursos alternativos como a unidade psiquiátrica em hospital geral, hospitais-dia, hospitais-noite, centros de convivência, lares abrigados, cooperativas e atendimentos ambulatoriais.

§ 4° As emergências psiquiátricas deverão obrigatoriamente compor as emergências dos hospitais gerais”.

Como se sabe, os leitos psiquiátricos manicomiais não foram substituídos gradativamente nos mais de 30 anos de vigência da Lei Orgânica do DF. O HSVP tem, atualmente, 83 leitos psiquiátricos, sendo quase 70% do total de leitos psiquiátricos públicos e quase 60% de todos os leitos em saúde mental público do DF. 

Concluindo, de fato, frisamos o Parágrafo 4º, o qual afirma que as emergências psiquiátricas deverão obrigatoriamente compor as emergências dos hospitais gerais. Negritamos este ponto, pois, desmobilizar (fechar) os leitos da enfermaria do HSVP, mantendo os leitos para urgência e emergência, de modo que o HSVP se torne um “pronto-socorro psiquiátrico”, ou melhor, volte a ser concretamente o HPAP (Hospital de Pronto Atendimento Psiquiátrico), não só é insuficiente, como continua a desrespeitar uma Lei – e não qualquer Lei, mas a Lei Orgânica do DF.

Pelo fechamento do HSVP!

Pelo fim de todos os manicômios!

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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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