Ouça a Rádio BdF

Para manter os discursos bonitos na COP 30, o Estado vai precisar garantir os direitos indígenas

O país que se apresenta como líder em preservação ambiental é o mesmo que está prestes a decretar sentença de morte aos povos indígenas com a tese do marco temporal

“Sangue indígena: nenhuma gota a mais!” Foi com esse grito de guerra, ecoado pelos povos indígenas de todo o Brasil, que no dia 28 de agosto de 2024 o movimento indígena se retirou da mesa de conciliação do Supremo Tribunal Federal, reafirmando o princípio histórico e imutável da sua luta: não há negociação sobre os direitos originários à terra. No entanto, o ministro relator Gilmar Mendes ignorou a ausência dos povos indígenas na negociação e deu continuidade aos debates. Naquele dia, a mobilização foi não apenas grande em número de manifestantes nas ruas, mas também em coragem. Era mais um capítulo de uma longa e árdua batalha por direitos.

Neste ano, o movimento indígena se prepara para novos enfrentamentos contra a tese do marco temporal, com o retorno das discussões na mesa de conciliação do STF. O processo ocorre em um contexto de crescente atenção global à proteção ambiental e à defesa do clima, com o Brasil assumindo um papel central na Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), marcada para novembro de 2025, em Belém (PA). Nesse cenário, o país se vê diante do risco de consolidar um retrocesso histórico ao negligenciar os direitos territoriais dos povos indígenas em nome de interesses econômicos e políticos. 

A discussão sobre o marco temporal começou em 2009 com o julgamento do caso Raposa Serra do Sol e ganhou força em 2017, quando a Advocacia Geral da União (AGU) institucionalizou a tese. Embora o STF tenha rejeitado o marco temporal em 2023, ameaças como a indenização a proprietários rurais de “boa-fé” e a exploração de recursos em Terras Indígenas ainda estão em debate. Em 2023, a lei 14.701/2023, que legaliza a tese do marco temporal, foi aprovada pela Câmara dos Deputados, impondo restrições aos direitos territoriais indígenas, permitindo invasões “de boa-fé” e autorizando intervenções militares nas TIs.

Em resposta, o movimento indígena, junto a partidos políticos-partidários, protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF. O ministro Gilmar Mendes criou uma câmara de conciliação para discutir o marco temporal, mas para o movimento indígena isso já era um alerta. Mesmo com a exclusão das vozes indígenas em agosto, o STF prorrogou os trabalhos da câmara até fevereiro de 2025, enquanto as ameaças à integridade dos direitos territoriais continuam.

Com o retorno do recesso, o STF inicia 2025 com decisões graves e preocupantes. Após a última reunião da mesa de conciliação sobre os artigos da lei e temas relacionados ao marco temporal, o gabinete do relator Gilmar Mendes elaborou uma minuta de Projeto de Lei Complementar, buscando conciliar as diversas propostas apresentadas nas discussões e tentar aproximar as diferentes posições expressas durante as reuniões. 

Na busca por “racionalizar os trabalhos da Comissão”, o STF está caminhando para medidas equivocadas, com um texto que suscita mais ataques aos direitos territoriais dos povos indígenas. A proposta de compensação territorial e indenização de posseiros não indígenas pode adiar a demarcação e favorecer interesses do agronegócio. O novo texto  permite, ainda, que o presidente da República decida quais terras indígenas serão abertas para pesquisa e exploração mineral, com a condição de haver consulta às comunidades e aprovação do Congresso Nacional.

Para agravar ainda mais a situação, o Congresso Nacional indicou Silvia Waiãpi (PL-AP), uma defensora do marco temporal e apoiadora de políticas anti-indígenas, para uma vaga de titular na comissão do STF. Isso ocorre enquanto Célia Xakriabá (Psol-MG), que tem participado ativamente dos debates, havia solicitado a titularidade. A estratégia é a mesma: garantir a presença de quem legisla contra os povos indígenas e excluir aqueles que buscam assegurar a proteção e a vida dentro dos territórios.

O movimento indígena se vê em um cenário crítico devido à demora na conclusão das discussões, o que tem gerado um vácuo jurídico que afeta diretamente os territórios indígenas e favorece a continuidade da Lei 14.701/2023. Esse impasse tem sido um dos fatores que possibilitam decisões como a do ministro André Mendonça, que revogou a demarcação da Terra Indígena Toldo Imbu, localizada em Abelardo Luz, Santa Catarina, utilizando como base a suspensão temporária das contestações relacionadas ao processo do marco temporal. No entanto, a criação de um projeto de lei que atropela ainda mais os direitos indígenas não será a solução para essa situação. Pelo contrário, essa abordagem apenas colocará em risco a preservação cultural dos povos indígenas e a manutenção de seus territórios, agravando ainda mais o cenário já problemático e desprovido de uma resolução justa.

A pergunta que devemos nos fazer agora é: como um país que pretende liderar pelo exemplo de preservação ambiental em 2025, na COP30, não garante a proteção dos territórios dos povos que mais preservam a Amazônia brasileira e demais biomas? E, afinal, será que 2025, ano da COP30 no Brasil, será finalmente o momento em que os direitos dos povos indígenas serão plenamente reconhecidos e garantidos pelos poderes do Estado? Pelo cenário atual, a resposta é inegavelmente não.

Estamos vendo um retrocesso nos direitos dos povos indígenas, com decisões do Legislativo e Judiciário que não garantem  a participação efetiva do movimento indígena, colocando em risco culturas e modos de vida de comunidades inteiras. O Executivo também falha em proteger esses territórios, especialmente pela falta de investimentos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Desde o início do governo Lula, foram homologadas 13 terras indígenas, emitidas 11 Portarias Declaratórias e feitas 6 demarcações físicas, mas esses avanços ainda são insuficientes diante da ameaça do marco temporal.

Além da falta de urgência na proteção dos territórios, o Brasil adota uma postura de esconder os problemas, minimizando questões essenciais para preservar sua imagem na Conferência das Partes. Isso se reflete em discursos vazios, distantes da realidade, e na ausência de ações concretas para superar os desafios que os povos indígenas e o meio ambiente enfrentam. Já imaginou o impacto para o Brasil se o mundo descobrir que o país está prestes a decretar sentença de morte aos povos indígenas?

No entanto, para os povos, não há avanços sem luta. No Pará, estado que sediará a COP 30, os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos protagonizaram o que muitos chamam de uma nova Cabanagem. O levante foi tão impactante que forçou o governador Helder Barbalho (MDB), aspirante a líder global na luta contra as mudanças climáticas, a recuar em relação à lei 10.820/24, que atacava gravemente a educação e a autonomia dos povos indígenas e quilombolas.

A dominação do modo de vida tradicional, o uso da força policial, o silenciamento, estratégias de divisão dos movimentos, a tentativa de apagamento cultural e a abertura para a invasão de terras são práticas que ecoam uma história já conhecida. A diferença agora é que estamos diante de um genocídio legislado. Levantes como o ocorrido no Pará, que se repetem em diversos territórios, demonstram que, apesar da continuidade de um projeto colonial, parafraseando Conceição Evaristo, os povos combinaram de não morrer. 

Os povos deixam claro que, se não houver espaço para serem ouvidos nas mesas de conciliação, virarão a mesa do poder e farão das ruas o palco de suas conquistas.

*Alexandre Arapiun é estudante de Direito (UFOPA) e estagiário na assessoria jurídica da Terra de Direitos

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Veja mais