“eu não tenho nada pra dizer,
por isso digo;
eu não tenho muito o que perder,
por isso jogo;
eu não tenho hora pra morrer,
por isso sonho”
Coisas da Vida, Rita Lee
Preciso começar este texto registrando meu cansaço emocional para tratar do tema. Parei várias vezes essa escrita; retornei. Pensei em não publicá-lo. Não porque tenha dúvida acerca da relevância e da violência profunda envolvida em todos os assuntos que se referem à terceirização. É que faz tanto tempo que a perversidade da terceirização vem sendo denunciada, que a forte impressão de que tudo já foi dito e de que, mesmo assim, as coisas só pioram, é constante.
Os sentimentos que me fazem escrever são a fúria, a tristeza, mas também um tanto de esperança. Como diz a música de Rita Lee, que coloquei na epígrafe, é preciso dizer, mesmo quando não parece haver mais nada a acrescentar. É preciso sonhar, enquanto ainda houver vida. Pois bem, na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu decisão (RE 1298647) afastando a responsabilidade da Administração Pública em um caso, no qual tomou trabalho por meio de empresa interposta. Faz décadas que essa técnica perversa da extração de trabalho tem sido a principal chaga no contexto das relações sociais, denunciada por tantas pessoas que insistem na necessidade de combater toda forma de terceirização e que ao longo desses anos foram acusadas, de modo disfarçado ou ostensivo, de estarem exagerando. Bastava diferenciar atividade-meio de atividade-fim. Bastava responsabilizar os tomadores. Nada bastou.
Por isso, a fúria.
O próprio sistema de Justiça, inclusive trabalhista, se encarregou de afrouxar cada vez mais o compromisso com o direito fundamental à relação de emprego e ao concurso público, flexibilizar, contemporizar, desculpar. Esse foi o caso do processo de Maria Cecília Soares. Ela ajuizou demanda, em agosto de 2014, informando que havia trabalhado para a Empaserv, uma empresa terceirizada. Suas tarefas sempre foram realizadas no Fórum da cidade de Conchas, em São Paulo. Maria Cecília era auxiliar de limpeza e não recebeu suas verbas rescisórias. A empresa sumiu sem fazer o pagamento e não compareceu à audiência. A Administração Pública também não, mas apresentou recurso à sentença que reconheceu o direito da trabalhadora. O TRT de São Paulo excluiu a condenação aos danos morais e manteve a responsabilidade apenas pelos salários. O Estado recorreu novamente, mas o TST manteve a decisão. Não satisfeito, recorreu ao STF.
O caso foi considerado de repercussão geral, o que não deixa de constituir uma ironia interessante, pois discute apenas verbas rescisórias, que não foram pagas em 2014. Há, sem dúvida, repercussão geral, pois são milhões de pessoas trabalhadoras que exercem atividade remunerada em favor da Administração Pública, mas são contratadas por empresas prestadoras. Muitas delas, talvez a maioria, passa pela mesma experiência de Maria Cecília: a de perder o emprego sem receber nada, sem conseguir pagar o aluguel do mês seguinte; o supermercado; a conta do cartão. Aliás, há outra ironia neste processo: o Poder Judiciário foi o tomador do trabalho.
A decisão do STF, em fevereiro de 2025, mais de 10 anos após a trabalhadora ter perdido seu emprego sem receber seus direitos, é de que a Administração Pública não tem responsabilidade. O artigo 37 da Constituição estabelece que “cargos, empregos e funções públicas” devem ser ocupados mediante “aprovação prévia em concurso público”, ressalvadas apenas as nomeações para cargo em comissão. O Estado, portanto, deve contratar na forma da Constituição. Como é possível compreender que houve fiscalização, se o Estado escolheu não contratar diretamente e a empresa para quem repassou essa função sumiu sem efetuar pagamento de salário?
Essa é a realidade da terceirização: contratadas pelo menor preço, as prestadoras geralmente não subsistem por mais de dois ou três anos. Não podem sequer ser chamadas de empresas, pois não empreendem, não atendem função social. São apenas escritórios que contratam. Quando um sai e outro entra, é comum que as mesmas pessoas sigam trabalhando nos mesmos locais. Acontece também na Justiça do Trabalho. A cada nova licitação, é quase palpável o medo profundo de não seguir trabalhando, de não mais conviver com as mesmas servidoras, realizar as mesmas tarefas. Essas pessoas se submetem porque precisam do emprego e sabem que, pelo menos, terão sua CTPS assinada, ainda que provavelmente esse vínculo termine com o desaparecimento do atravessador e o calvário da busca por direitos na Justiça.
É um quadro de tristeza, para quem suporta essa realidade, para quem convive com ela e para quem analisa os casos que desfilam, todos os dias, nas salas de audiência, retratando sempre a mesma idêntica realidade.
Na decisão do caso de Maria Cecília, o STF fixou a necessidade de que o Estado exija prova de patrimônio da prestadora, para contratar. Bem, essa prova não existia nos autos. E só quem poderia tê-la produzido era a própria administração, no momento da contratação. Ainda assim, a responsabilidade do Estado foi excluída. Maria Cecília é apenas mais uma. Esperou 11 anos pela resposta jurisdicional. Agora, tem uma decisão reconhecendo que sua rescisão não foi paga, mas ninguém irá satisfazer seus créditos. Da perspectiva jurídica, aliás, há muito para dizer, sob o modo como o ônus da prova vem sendo desfigurado. Responsabilidade é matéria de execução. A prova da responsabilidade é a circunstância objetiva do benefício auferido com o ato que causou o dano. Mas não quero tratar disso. Até porque seria preciso aprofundar um pouco a discussão, não apenas sobre o ônus da prova, mas especialmente sobre a função que a responsabilidade extraordinária assume no contexto das relações sociais, como instrumento de comprometimento com uma ordem jurídica que, diga-se de passagem, esse mesmo Estado estabeleceu.
Quero sublinhar o efeito concreto e simbólico que uma decisão como essa pode gerar. Afirmar que a administração não tem culpa, implica reconhecer que a escolha administrativa de terceirizar, em lugar de contratar diretamente, confere uma espécie de salvo conduto. Significa afirmar que é possível terceirizar, não fiscalizar e aguardar que a empregada consiga provar em juízo a negligência. Trata-se de algo bastante similar ao que já acontece, em relação à justa causa do empregador que, independentemente do que fizer, poderá aguardar que a trabalhadora prove (ou não) em juízo a sua culpa para a extinção do vínculo, usando em seu favor o tempo do processo. De novo, e sempre, é a racionalidade escravista que permite naturalizar o pensamento que atribui à vítima de violência o ônus de demonstrar que dela foi alvo.
Nas duas hipóteses, a prova é extremamente difícil e sua atribuição à trabalhadora implica um recado social para que desista, inclusive, de buscar em juízo seus direitos. Em um tal contexto, pouco ou nada adianta editar protocolos para julgamento com perspectiva de gênero ou raça. Maria Cecília é uma mulher trabalhadora. Não sei a cor da sua pele, mas sei que a maioria das trabalhadoras terceirizadas é negra. Reconhecer os atravessamentos de raça e gênero nas questões de classe só tem utilidade se implicar consequências no modo de pensar e fazer valer o direito.
Onde entra a esperança?
Bem, mas afirmei que o que me move a escrever é também a esperança. É que a tese fixada pelo STF refere que há negligência “quando a Administração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas”. Aqui entra a esperança. Qualquer atraso no pagamento de salário ou no depósito do FGTS; qualquer prática de assédio ou de exigência de horas extras sem pagamento precisará gerar uma notificação formal, pois ao que parece a administração não tem como saber o óbvio: que o efeito concreto da terceirização é a precarização das condições de trabalho; que o destino da maioria das prestadoras é desaparecer sem honrar seus débitos trabalhistas.
Pois bem, eis a saída: que a advocacia trabalhista, o Ministério Público do Trabalho (MPT), os sindicatos notifiquem. Afinal, como também afirma a decisão, é “responsabilidade da Administração Pública garantir as condições de segurança, higiene e salubridade”. Então, a decisão pode ser interpretada e aplicada de modo a impedir que trabalhadoras, como Maria Cecília, precisem provar fato negativo.
É claro que há um tanto de sarcasmo no que acabo de escrever, pois o compromisso com a efetividade de direitos sociais (ao emprego; ao salário; ao concurso público; ao serviço público; a uma sociedade decente) implicaria o efetivo combate a todas as formas de terceirização e de burla a direitos através desse artifício perverso. Implicaria, antes de mais nada, assumir a culpa pelo processo de desmanche do Estado e do serviço público nas últimas décadas, reconhecer a implicação das políticas judiciárias no quadro de precarização do trabalho e o papel central que a terceirização exerce neste cenário.
Concretamente, para Maria Cecília resta um processo que, muito provavelmente, será arquivado com dívida ou, talvez, de modo definitivo, com a pronúncia de prescrição intercorrente, pois também prevalece o entendimento de que é da trabalhadora o dever de encontrar os bens do devedor, já que o Estado não consegue ser muito eficiente neste mister. Então, o resultado prático não deixa de ser um incentivo a uma forma de contratação que destrói carreiras públicas, precariza, impõe salários baixos e desampara no momento da despedida.
As salas de audiência e os banheiros dos fóruns seguirão sendo limpos por mulheres que, como Maria Cecília, sabem – sem que ninguém precise explicar – que o patrão (a quem muitas vezes nem conhecem) pode desaparecer a qualquer momento. E que as pessoas gentis e sempre tão dispostas a presenteá-las nos finais de ano; aquelas que dizem onde colocar a louça e que produto usar no vaso sanitário, fazem parte de uma instituição que não poupará esforços (e dinheiro público) para levar demandas até o STF, representada por profissionais concursados, com bons salários e estabilidade. Em suas salas refrigeradas, esses representantes escreverão peças processuais e poderão regozijar-se com decisões que isentarão o Estado de assumir os efeitos sociais, humanos e psíquicos de suas escolhas. Afinal, pode ser enlouquecedor perder o emprego, sem nada receber, nem ter acesso ao seguro que garante a sobrevivência imediata.
Eu estou dentro dessa estrutura. Convivo diariamente com essa realidade. Posso manifestar meu desconforto, minha revolta, minha angústia, porque também tenho estabilidade e salário garantido. Do contrário, estaria com medo, como Maria Cecília certamente estava, há dez anos atrás, quando perdeu o emprego. Ainda assim, ela teve a ousadia de procurar uma advogada e a coragem de acreditar em um sistema de justiça que diz existir para garantir que as normas da Constituição sejam respeitadas.
Por isso mesmo, a palavra final vai para Maria Cecília, que muito provavelmente nunca lerá este texto (mas também para todas as pessoas que hoje não têm escolha, a não ser trabalhar na condição de terceirizadas ou defender os direitos dessas pessoas): obrigada por tentar; por tensionar; por não desistir de acreditar. Provocar a discussão é também um modo de promover mudanças e há mudanças que são cada vez mais urgentes e necessárias.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.