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Ser feminista: a constante busca por outros mundos possíveis

Os movimentos feministas e antirracistas que fazem crítica ao capitalismo têm a pretensão de um outro discurso sobre a universalidade dos seres, sobre a importância da diferença, da pluralidade

“… É preciso estar atento e forte

Não temos tempo de temer a morte”

(Gal Costa, 1969)

Os feminismos – diferentes em suas compreensões mais específicas – têm em comum o incômodo com o fato de a sociedade capitalista ser tão profundamente masculina. A propriedade privada, por muito tempo, só pertencia aos homens (brancos); cujas mulheres adotavam seus sobrenomes, também elas uma posse adquirida através do matrimônio ou da filiação. Algo que, aliás, até hoje acontece. Em (quase) todas as suas matizes, portanto, os feminismos têm em comum esse desajuste com o que se convencionou chamar patriarcado. Mesmo esse elo comum, porém, não define toda a plêiade de movimentos feministas. Há manifestações e organizações que assim se declaram, cujo objetivo é advogar os benefícios de ser uma “esposa troféu”.

Não penso que essa seja uma discussão fácil, pois ser sustentada implica fugir da lógica perversa e alienante de ter de vender trabalho por capital. Para quem pensa criticamente o capitalismo, fugir da obrigatoriedade do trabalho como condição para a sobrevivência, é parte de um horizonte de luta fundamental. O problema é que, em uma estrutura patriarcal, esses discursos não conseguem se descolar de outros, pelos quais quem sustenta a casa tem o direito de posse e propriedade sobre o corpo feminino, que se torna (simbólica e concretamente) parte de seu patrimônio, o que terá reflexos na violência que atinge meninas e mulheres e que, por isso mesmo, atingiu número recorde em 2023.

Importa pensar sobre isso, pois há atualmente uma verdadeira campanha pelo resgate de práticas misóginas e LGBTfóbicas que, se não haviam sido superadas, pareciam incapazes de conduzir com tanta força o debate público. Ao contrário, o discurso de ódio a corpos racializados e feminilizados é o móvel principal de identificação coletiva ao redor de sujeitos como Trump ou Musk. Não é muito diferente por aqui. Millei recentemente anunciou um projeto de lei para acabar com o tipo penal de feminicídio, invocando a igualdade como o argumento moral que dá suporte à sua misoginia. Que seja justamente o ódio aos imigrantes (racismo) e às mulheres (machismo) a mobilizar o que se convencionou chamar direita radical (um termo bastante discutível, diga-se de passagem) é muito significativo.

No Brasil, também há um movimento bastante assustador, pelo resgate de compromissos patriarcais sobre os espaços sociais, profissões e performances que são esperadas e que podem ser exercidas pelas mulheres. Nesse cenário, se insere a reivindicação dos benefícios de ser uma esposa troféu. Reflete a noção restritiva da condição de mulher, em um contexto marcado pela insistência no pensamento maniqueísta, segundo o qual o mundo está cortado em dois, como escreve Preciado: homem x mulher; esquerda x direita; indivíduo x sociedade. Uma percepção restritiva da realidade, historicamente aliada à violência e à exclusão, à consideração do outro (diferente de mim) como alguém a ser eliminado. Daí porque a misoginia vem de braços dados com a guerra, com a corrida armamentista, com a morte.

Capitalismo, patriarcado e racismo formam um nó, como escreve Saffioti. Um nó que não se dissolve, sem que as estruturas sociais que sustentam nossa forma de viver juntas também desabem. Isso implica afirmar muito mais do que o conceito de interseccionalidade, por exemplo, consegue abranger. Implica reconhecer que não há como superar o racismo e o machismo dentro do ambiente capitalista. A racialização dos corpos, produto do período de expansão imperialista colonial, alterou o metabolismo da sociedade capitalista. Toda a retórica de fragilidade feminina foi ignorada em relação às mulheres indígenas e negras, estupradas e exploradas, tal como os homens racializados.

O discurso do indivíduo autonômo, proprietário da força de trabalho, capaz de acumular riquezas e firmar contratos foi estrategicamente eliminado em relação aos homens indígenas e negros, enquanto seguiu sendo reforçado como ideal inatingível. Ao chegarem aqui, os colonizadores impuseram um modelo de convívio social, no qual a família heterossexual figura como expressão máxima. Pai, mãe e filhos (saudáveis) não compõem apenas o retrato de um comercial de margarina, são o ideal de sujeitos sociais.

O retrato da mulher bela, recatada e do lar é a expressão mais emblemática que pode haver do capitalismo. Ao lado (ou atrás) dela, a mulher racializada, atuando no trabalho doméstico. Daí porque movimentos como o da esposa troféu ou do Redpill têm ganhado expressão. Não porque sejam novidade, mas porque buscam a raiz mais profunda do que representa viver em um contexto capitalista, já que reforçam a função social atribuída às mulheres, de cuidar, manter e reproduzir a vida e, portanto, a força de trabalho. A popularidade desses movimentos revela, paradoxalmente, a profundidade da crise do capital.

Os movimentos feministas e antirracistas que fazem crítica ao capitalismo têm a pretensão de um outro discurso sobre a universalidade dos seres, sobre a importância da diferença, da pluralidade. Buscar identificação e reconhecimento não se confunde com reivindicar uma identidade em oposição às demais. Ao contrário, é o discurso capitalista que se fundamenta na exclusão do outro, disseminando a ideia de que somos racionais em relação aos demais seres, para poder dominá-los, usá-los, eliminá-los, ou de que somos proprietárias da força de trabalho, para sermos exploradas em favor da acumulação de riqueza alheia. Portanto, o discurso capitalista nunca foi universal. É individualista e excludente. Chamar os movimentos que o criticam de identitários é reduzir, propositadamente, seu campo de luta. Uma cilada, em que muitas de nós caem, sem nem perceber. Afinal, é preciso estar atenta e forte, como cantava Gal, pois o tempo inteiro a sedução capitalista nos alcança, com sua linguagem palatável e envolvente.

A questão é que discursos sobre as vantagens em permitir que homens nos sustentem estão sedimentados em outras práticas que, de modo muito mais sútil, também contribuem para manter a estrutura social em que vivemos. Práticas que acabam criando o ambiente fértil para que esse machismo todo se propague. Mesmo atos que em princípio podem parecer democráticos ou alinhados com o movimento feminista, como a nomeação de ministras para o governo, podem muito bem não passar de uma encenação para manter a estrutura patriarcal, especialmente quando as mulheres escolhidas para administrar pastas importantes têm os orçamentos reduzidos ou são defenestradas pouco tempo após a nomeação, para dar lugar aos mesmos homens brancos de sempre.

Não reconhecer o caráter capitalista/racista da sociedade, como uma questão pressuposta e estruturante, interdita a possibilidade de fazer atuar uma visão feminista que efetivamente nos permita superar a lógica social de submissão aos homens, em maior ou menor grau. Mulheres que exercem uma profissão e trabalham por salário têm condições de sair de um relacionamento tóxico ou de viverem sozinhas (o que  é muito!), mas seguirão sujeitas à violência masculina e inseridas em uma estrutura social, na qual, parafraseando Saffioti, o poder é do macho.

Por isso, acredito em um feminismo que tenha no horizonte um outro modo de vida em comunidade. Não se trata, portanto, apenas de ocupar espaços de poder. Trata-se de transformar as relações sociais, o modo de produzir e fazer circular riqueza, a forma de compreender e de atuar sobre a natureza e com os demais seres. Também não se trata de um ideal revolucionário, no sentido clássico, mas de uma vida recheada de práticas que promovem microrrevoluções, como escreve Suely Rolnik.

Sem esse horizonte de profunda mudança radical, muitas reivindicações feministas têm servido, ao mesmo tempo, para atenuar as violências de que são alvos alguns corpos femininos e feminilizados, mas também para reforçar a estrutura que as naturaliza e reproduz. A consequência é que alguns corpos serão salvos, mas muitos seguirão sendo eliminados. Se essa parece uma estratégia defensável, é porque não estamos olhando para cima, como convoca o título de um filme de 2021, catalogado como ficção/comédia. Uma perspectiva mais ampla permite concluir, com certa facilidade, que ninguém se salva, pois o capitalismo é, no limite, a aposta na destruição de tudo.

É sempre incômodo pensar que negar o capitalismo ou questioná-lo implica, também, questionar tudo aquilo que nos permite (a um grupo muito limitado de pessoas, é verdade) a preguiça, a inércia e, ao mesmo tempo, a mobilidade, a comodidade de dormir em uma cama, de ter ar condicionado, quando a temperatura ultrapassa 40 graus. Afinal, geralmente fazemos uma imediata conexão mental, entre o sistema capitalista e a tecnologia que facilita nossa existência. Parte dessa tecnologia, porém, que só está ao alcance de um número limitado de pessoas, é desenvolvida e utilizada ao custo da possibilidade de vida de todas as espécies, incluída a humana.

O ponto é que facilitar a vida deve ser um objetivo que não se opõe à possibilidade mesma de existir. Isso pode parecer simples, mas no contexto atual é completamente contraintuitivo. Viver bem deve ser a realidade para todas as formas de existência.

No campo da nossa compreensão de quem somos e do que significa estarmos vivas, o capitalismo é ainda menos defensável. A necessidade de vender trabalho como condição para o acesso ao alimento, à água, à roupa, ao remédio é objetivamente alienante e adoecedora. Ter como objetivo acumular riqueza é também uma forma de estranhamento da vida, em que transferimos o sentido da contemplação, da experiência, do afeto, para os objetos que se acumulam de modo virtual, nas instituições financeiras, ou material, nas casas de quem ainda as possuem.

Por muito tempo, parecia errado ou exagerado escrever contra o capitalismo; quase uma heresia. Mas as tentativas de salvá-lo, domesticando sua ânsia devoradora, falharam. Adaptar a lógica capitalista a uma racionalidade solidária, sustentável, menos machista, mantendo, entretanto, sua estrutura, é seguir apostando no fim do mundo. A postura autoritária, por vezes abertamente nazista/fascista, assumida hoje em alguns países e movimentos políticos, é sintoma desse falimento. Não há mais espaço nem tempo para contemporizar. Não existem medidas paliativas que sejam suficientes para fazer seguir adiante um modo de vida coletivo que é predatório.

Cada vez que ouço uma crítica, ostensiva ou velada, à postura solidária, ao desprendimento, às redes feministas em que o que efetivamente importa é o bem viver de todas, reafirmo minha convicção de que o mundo em que eu quero viver é exatamente esse. Um mundo de seres (humanos ou não) coloridos, alegres, plurais, em que uma existência dependa/complemente a outra e todas importem.

Um mundo essencialmente comunitário, que acolhe a vulnerabilidade e a diferença. Esse mundo é feminino, é feminista, mas também é necessariamente anticapitalista e antirracista. Abraçar um horizonte de transformação social não é algo fácil. Implica uma reformulação radical e profunda de praticamente todas as nossas certezas. A militância feminista anticapitalista e antirracista é contínua, diária, exaustiva. Dói, incomoda, atrapalha, mas também dá sentido às nossas existências. Não rende homenagens, nem troféus, não gera riqueza material. Gera vida.

Essa já é a história de tantas de nós, muitas delas apagadas dos registros literários, mas recuperadas pela teimosia de quem não desiste de acreditar. Essa já é a realidade de muitas redes de mulheres que resistem e insistem em um modo comunitário de existir. Por isso, nesse mês de março de 2025, deixo minha homenagem para essas tantas mulheres que nos antecederam e para aquelas que hoje seguem fazendo do cotidiano da vida uma constante busca por outros mundos possíveis.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato 

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