As pessoas que participaram do breque dos apps não são trabalhadoras autônomas, pertencem a uma categoria profissional que já passou da hora de ver seus direitos sociais reconhecidos. Essa mobilização ressignifica, atualiza o conceito histórico de greve.
Afinal, quando pessoas tipógrafas, padeiras, ferroviárias paralisaram no final do século XIX e início do século XX, também elas formavam categorias sem proteção social. A legislação trabalhista é seu legado, nunca foi condição para a luta coletiva.
Hoje, motociclistas e motoristas trabalham para multinacionais que insistem em usufruir o melhor dos dois mundos (dirigir a atividade; decidir o valor do trabalho e lucrar com isso; até mesmo punir e, ainda assim, não reconhecer direitos trabalhistas). E, mesmo com toda a adversidade de um cotidiano em constante desamparo, dão uma lição a toda a sociedade brasileira.
Nada melhor, portanto, para a compreensão pública do que está em jogo na disputa sobre a regulação desse trabalho, do que essa paralisação. Ela evidencia o absurdo da retórica de desmanche da proteção social, que tem sido reforçada, inclusive, por quem atua em instituições que só existem para efetivar direitos trabalhistas.
Refiro-me aqui à “tese jurídica” exposta esta semana no site do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que discute se: “É válida a contratação de trabalhador que constitui pessoa jurídica para a realização de função habitualmente exercida por empregados no âmbito da empresa contratante (‘pejotização’)” e se é possível “a conversão de relação de emprego em relação pejotizada?”. Sobre isso, remeto à leitura do texto de Jorge Luiz Souto Maior, porque não há modo melhor de expressar o que essa consulta causa em quem tem o mínimo compromisso com direitos trabalhistas. Trago a notícia apenas para contextualizar o que efetivamente quero discutir neste texto: a importância do movimento social conhecido como “breque dos apps”, como expressão de uma nova fase na luta de classes no Brasil.
Enquanto quem lida diretamente com a proteção social parece ter perdido a bússola, para dizer o mínimo, é uma vez mais a classe trabalhadora que, de modo coletivo e organizado, consegue tensionar a realidade, colocando em cena a violência que o capital exerce sobre o trabalho.
Ora, porque essas trabalhadoras e trabalhadores reivindicam, se são autônomos?
Por que precisam paralisar para chamar a atenção das empresas e delas exigir melhores condições de trabalho? Afinal, empreendedores não dependem de quem lhes toma trabalho, para melhorar a própria condição material de existência.
Impossível termos esquecido, em tão pouco tempo, a importância que essas pessoas assumiram durante a pandemia da covid-19. Saudados como heróis, protagonizaram o primeiro breque dos apps em 2020, chamando a atenção para a esquizofrenia de uma sociedade que, mesmo diante do pavor da morte coletiva, insistia em seguir recebendo comida e medicamento em casa.
Já na época era não apenas possível, mas indispensável perceber que a dependência (subordinação) às regras das empregadoras era intrínseca àquela espécie de troca. Tivessem a possibilidade de permanecer em casa, cuidando de si e de seus afetos, é difícil imaginar que prefeririam seguir arriscando a vida, no auge da contaminação e sem a possibilidade de imunização.
Não se tratava de uma escolha, era necessário trabalhar para sobreviver.
O breque foi um pedido de socorro, em razão da exposição à morte e aos acidentes, mas também uma forma de denúncia da ausência completa de autonomia nessa atividade. Entretanto, suas condições de trabalho não foram alteradas.
Em 2025, nova paralisação acontece com intensa participação da categoria e, embora minimizada por parte da grande mídia, sua repercussão social tem potência para fazer desse o primeiro ato de um movimento de reivindicação bem maior.
O argumento de que nem todos pararam ou de que algumas pessoas que trabalham desse modo efetivamente acreditam-se autônomas não representa mais do que a complexidade que sempre implicou o processo histórico de identificação coletiva e luta conjunta. Foi assim com as categorias hoje expressamente abrangidas pela CLT, quando suas greves mobilizaram a sociedade brasileira.
Se a discussão deixar o cenário maniqueísta e propositadamente desvirtuado do “ser ou não ser CLT” e ingressar no terreno da materialidade da vida e do sofrimento dessas pessoas, não haverá dúvida. Quem passa o dia se arriscando no trânsito, sabe que é melhor ter a possibilidade de enfrentar as consequências de um acidente ou adoecimento, com seguridade social; quer garantia de piso salarial por entrega e máximo de tempo de trabalho. Sabe que é melhor ter férias, gratificação natalina, FGTS.
Essas trabalhadoras e trabalhadores sabem que é melhor ter a garantia de que a empresa não irá bloquear o acesso ao aplicativo ou impedir o trabalho sem justificativa lícita, como hoje acontece com tanta frequência. Ou seja, direitos sociais não são escolha, nunca foram. São condições de possibilidade de existência para quem vive do trabalho.
Isso, por si só, demonstra o quanto a discussão sobre autonomia ou subordinação nessa forma de prestação de trabalho é a dissimulação da realidade de precarização. Uberizada/pejotizada/precarizada é a relação social de emprego quando, em lugar da garantia constitucional, o que se apresenta é a fraude. Essa relação, em que de um lado existe um corpo trabalhador e de outro alguém que aufere vantagem com esse trabalho, é a típica relação de emprego. Por isso mesmo, quem vende o serviço, define preços, condições de trabalho, forma de cadastro e mesmo quando (e por quanto tempo) o trabalho será realizado é a empresa, ou seja, a empregadora/usadora/tomadora do trabalho.
Qualquer modo de disfarce (terceirização, pejotização, uberização) constitui atualização do método (tão antigo quanto o discurso dos direitos sociais) de manipulação da linguagem, para conseguir extrair ainda mais trabalho, através de técnicas perversas de aprofundamento da violência.
A terceirização coloca um atravessador na troca, mas em nada altera o fato de que de um lado há uma empresa (ou duas, ou três…) auferindo vantagem econômica e, de outro, alguém que depende daquele trabalho para viver. O mesmo ocorre na “pejotização”, um neologismo que sintetiza com nitidez assustadora a perversão da falácia do empreendedor de si. Era isso que sustentava John Locke no século XVII: um sujeito proprietário de si, que exerce liberdade por meio da venda do trabalho. Foi contra os efeitos sociais dessa falácia, que o Direito do Trabalho se ergueu.
A “uberização” é uma variação do mesmo tema. Embora sedutora, a linguagem da parceria, da colaboração, da autonomia não resiste ao primeiro acidente de trânsito, à primeira necessidade de manutenção do veículo, ao primeiro adoecimento. Não impede o bloqueio, a fixação do valor do trabalho, a escolha de como o serviço será ofertado e prestado, com uso de ferramenta digital.
Esses recursos discursivos são tão sedutores, quanto enganosos. Reivindicam uma espécie de retorno para um passado que, assim atualizado, é bem mais perverso, pois ao contrário do ritmo e da intensidade do trabalho da época de Locke, hoje a possibilidade de esgotamento físico e emocional dessas pessoas trabalhadoras parece não ter limites. Se somarmos a isso, o fato de que no Brasil o trabalho esteve (e ainda está) vinculado à retórica da escravidão, teremos maior compreensão sobre a dificuldade em reconhecer a importância de estender condições materiais de existência a todas as pessoas que vivem do trabalho.
É justamente essa racionalidade escravista, constantemente atualizada por meio de tantas técnicas (políticas, econômicas e especialmente retóricas) de demonização dos direitos trabalhistas e de exaltação do empreendedorismo, que torna difícil reconhecer a condição de empregado, para quem se sente seduzido pelas falsas vantagens de ser empreendedor de si. E que torna o reconhecimento de direitos trabalhistas especialmente indigesto para quem detém o poder econômico e sabe muito bem que a profundidade da exploração é proporcional à precariedade do contorno jurídico que se reconhece a cada tipo de troca.
A jornada é um bom exemplo do que quero dizer com isso.
Não se resume a um tempo necessariamente definido pelo empregador, nem está atrelada a alguma espécie de regularidade. Jornada é a medida da troca, o quanto do tempo de vida é colocado à disposição (vendido) por salário. Ainda que intermitente, variável, flexível, é ainda o tempo despendido no trabalho que baliza a quantidade de dinheiro que será entregue à pessoa trabalhadora.
Já escrevi sobre a importância da luta pela redução do tempo de trabalho. As primeiras greves no Brasil tiveram essa pauta e eram paralisações de categorias lidas à época como autônomas, cuja condição de empregadas decorreu justamente desse reconhecimento. A percepção de que o tempo de vida é apropriado por alguém que lucra com o trabalho que é realizado talvez seja uma das questões mais nucleares a determinar a mudança na linguagem estatal e, portanto, o reconhecimento de direitos trabalhistas.
O “breque dos apps” também teve como uma das reivindicações a redução do tempo de trabalho. Claro, porque também na realidade dessas pessoas trabalhadoras há alguém que se apropria desse tempo de vida e o considera como parâmetro para a remuneração do trabalho. Se a luta pela redução do tempo de trabalho sempre foi marca da questão social que historicamente justifica e faz surgir regras trabalhistas, hoje ela adquire ainda maior relevância. Hoje, a luta pela redução do tempo de trabalho tem a mesma urgência da luta ambiental. É de vida que se trata, da possibilidade de existir fora do tempo da troca desigual e violenta, de que dependemos para poder ter acesso ao alimento.
Esse tempo é o que falta para conviver com filhos, ler, estudar e pensar sobre as razões pelas quais vivemos um caos ambiental. Para limitar esse tempo de exploração do trabalho, os direitos sociais trabalhistas foram construídos. Por isso, a jornada está sempre entre as primeiras reivindicações coletivas de uma categoria profissional que está em processo de identificação, reconhecendo-se como tal. Antes de motoristas e motociclistas, muitas outras categorias de trabalhadoras e trabalhadores se mobilizaram e conseguiram, com esforço que tantas vezes custou-lhes a vida, arrancar do Estado uma regulação jurídico-trabalhista, para poder ter vida além do trabalho.
O breque dos apps atualiza essa disputa e nos permite perceber a urgência das garantias sociais, mas também da superação desse modelo de sociedade que nos impede de viver. Tem potência para deslocar o campo de discussão, revelando a atualidade da questão social. Junto com a luta pelo fim do que se convencionou chamar “escala 6×1” forma uma pauta que pode efetivamente ser transformadora.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.