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Viagem a Holanda: Encobrir responsabilidades e desprezar a capacidade local

Em 2001 implantamos as primeiras Bacias de Amortecimento em Porto Alegre, uma das soluções vista com surpresa e admiração na Holanda

Trocar experiências e conhecimentos com outras nações sempre é importante. Ainda mais tratando-se dos Países Baixos, que possuem 26% de área abaixo do nível do mar, a partir de 1.0m e chegando a 6,76m próximo de Roterdã, e 59% sujeito a inundações pelo Mar do Norte e um conjunto de rios, afetando aproximadamente 70% da população. A partir de 1600 começaram a proteger-se com diques, casas de bombas e outras alternativas. Constituiu uma robusta estrutura nacional, ramificada em todas as regiões, com grande participação popular. A principal autoridade é a “Autoridade Nacional da Água”, cargo de Estado.

No entanto, este não foi o principal objetivo da recente viagem liderada pelo governador Eduardo Leite e o prefeito Sebastião Melo e grande delegação aos Países Baixos.

Foi mais um grandioso ato de ambos, com ampla cobertura da grande mídia, para encobrir a responsabilidade que tiveram em grande parte da ocorrência da catástrofe de maio/24. A falsa justificativa é: “Aqui não se sabia o que e porque estava ocorrendo, então é necessário buscar informações no exterior”.

Além de mais uma vez desconsiderarem e rejeitarem a experiência, conhecimento e capacidade locais para a solução do que deixou de ser feito (propositadamente ou não) e o que agora está por ser feito. Desconsideram completamente os profissionais ainda remanescentes nas estruturas estaduais e municipais, além dos existentes em outras estruturas locais privadas e públicas. Então vão em busca de consultorias caras, aliás, algumas já compromissadas antes das eleições de outubro de 2024.

Buscar exemplos de solução?

Vejamos alguns temas amplamente divulgados, durante a viagem:

Bacias de Amortecimento – Uma enorme surpresa e admiração ocorreram quando foi apresentada uma cancha de esportes que armazena provisoriamente o excesso de águas nas grandes chuvas.

Nada mais é do que o conceito de Bacias de Amortecimento, ou seja, locais para amortecer o excesso de águas. Em 2001 implantamos as primeiras Bacias de Amortecimento em Porto Alegre. Uma casualmente também usando uma cancha de futebol de salão na Avenida Benjamin Constant e a outra, em Ipanema, na área verde de um condomínio que estava sendo implantado por um dos netos da Sra. Déa Coufal, antiga grande proprietária da região e que hoje dá nome a uma das principais vias daquele bairro.

Por sua vez, as bacias de amortecimento também são integrantes de um conceito maior que são as Cidades Esponjas, ou seja, um conjunto de práticas para reter parte significativa das chuvas com a sua infiltração nos solos da cidade e outras medidas para reter ou aproveitar os excessos das chuvas. Vários aspectos ambientais neste sentido foram apresentados na visita. Para tornar Porto Alegre “mais esponja” é necessário implantar e reimplantar amplas regiões verdes, que terão outros amplos benefícios como redução das ondas de calor e retenção de parte da poluição. Neste sentido, a experiência de Medellin-Colômbia deve ser vista, pois está resolvendo vários problemas desta natureza de forma barata e simples, podendo ser aplicada em qualquer município (trataremos na próxima coluna).

Desvio parcial ou totalmente de rios – Esta possibilidade já é conhecida desde a década de 1960, quando engenheiros alemães contratados pelo extinto DNOS, analisaram como proteger Porto Alegre, tendo como referência o evento de 1941. Uma das alternativas avaliadas foi o “Canal Sinos – Gravataí” que propunha reduzir a água em Porto Alegre através da inversão do fluxo do rio Gravataí em direção ao oceano Atlântico, numa obra de 80 km de extensão, 70m de largura e 10m de profundidade. Esta proposta foi abandonada, porque além de causar outros sérios problemas, ficou muito aquém da necessidade de proteção de Porto Alegre. Qualquer hipótese neste sentido precisa ser analisada em modelo reduzido, o que o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS tem conhecimento e capacidade reconhecida internacionalmente. Também a FURG de Rio Grande tem muito conhecimento nesta área.

Trabalhar integradamente com a natureza – Aspecto amplamente conhecido entre nós. Muita ênfase foi citada nesta visita. Tomara que nossos governantes, cujas gestões primam por omissões e ataques ambientais, tenham aprendido algo.

Estrutura da gestão das águas – A estrutura dos Países Baixos, organizada para o país e atuante em todas as regiões, com participação popular é exemplar para a situação deles.

O governador anunciou uma nova estrutura para cuidar das águas no estado. Assim desconhece que no Brasil temos uma ampla estrutura – definida na Constituição Federal (CF) e leis – nunca totalmente implantada ou sendo sucateada ou eliminado o que já tínhamos, a saber:

Compete à União (Artigo 21, inciso XVIII da CF) – Planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações. Na prática significa estudar, planejar e implantar as obras estruturantes, nunca a manutenção, como falsamente foi alegado em relação ao evento de maio/24.

A estrutura que o governador deseja está assim constituída e na seguinte condição:

O Art. 25, §3º da CF recomenda instituir regiões metropolitanas, obviamente pela necessidade de tratar temas que ultrapassam os limites municipais, como é o caso do Saneamento. A Metroplan que fazia planejamentos, obras e pareceres para licenciamentos na região Metropolitana foi extinta indevidamente; necessita ser restabelecida. Muitos pareceres técnicos da Metroplan foram ignorados e vimos as respectivas regiões completamente alagadas em maio/24.

Comitês de Bacias Hidrográficas – A melhor forma de tratar das águas é através das bacias hidrográficas dos rios, que abrangem todas as áreas de onde fluem as águas de cada um deles. Caso o governador necessite de alguma experiência internacional deve visitar a França, onde funcionam exemplarmente desde 1960.

Mas antes é dever seu cumprir a Lei Estadual 10350/94, que formaliza a existência destes Comitês. Hoje existem 25 Comitês de Bacias Hidrográficas cobrindo todo o estado, que não conseguem cumprir suas funções por absoluta falta de recursos negados pelo governador. São órgãos constituídos por representações de cada Bacia. Podem ter mais participação popular através de consultas e encontros.

Os primeiros Comitês foram os dos rios Gravataí (do qual tenho o orgulho de ser um dos fundadores) e do Sinos, em 1989.

Municípios – A CF atribui aos municípios a titularidade (responsabilidade) do Saneamento como poder local. O Marco Civil do Saneamento – Lei nº14026/20, atribui claramente todas as atividades do Saneamento – água tratada, esgotos, lixos, drenagem urbana e proteção contra as cheias – aos Municípios. Como sabemos, a ampla maioria dos Municípios não possui nem recursos e nem estrutura para cumprir este compromisso. Devem, no mínimo, ter responsáveis por esta atividade. É inegável que necessitam dos Estados e da União.

Sem manutenção nada funciona

De nada adiantarão viagens internacionais, obras, serviços e estruturas se não receberem adequada e permanente manutenção. A prova maior está na inundação de Porto Alegre, que poderia ter sido evitada em grande parte, não fosse a falta de manutenção corriqueira nas comportas e casas de bombas, além de desobstrução de canalizações, galerias e arroios.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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