A Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (Ufape) lançou recentemente um edital inédito que abre 16 vagas direcionadas a pessoas travestis, transexuais, transgêneros, não binárias e bigêneros. Nas redes sociais, a universidade diz que as vagas são supranumerárias, ou seja, são vagas extras e não fazem parte das oportunidades do processo seletivo do Sisu.
A mensagem foi veiculada com muita simpatia e alegria por Luana, estudante de Pedagogia na instituição. A notícia teve grande repercussão para além da página da universidade. Outros perfis independentes da região do Agreste meridional fizeram o repost, que continham em seus comentários um verdadeiro show de horrores entorpecidos pelo ódio.
A maioria deles trazia questões meritocráticas e dúvidas sobre a capacidade de Luana e de corpos ou histórias semelhantes à sua. Entretanto, para reafirmar esse ódio, além do discurso violento destacava-se a repugnância ao corpo deficiente como uma justificativa aceitável da incapacidade.
Melhor explicando: parte dos comentários agrediram a existência de Luana, acusando-a de ser anencéfala, por “precisar” de ações afirmativas para ingressar na universidade, justificando que tal “privilégio” só seria aceitável caso a pessoa fosse “deficiente ou doente mental”.
As contradições são muitas, mas levam a um mesmo lugar: a desqualificação e o ódio às existências diversas. Corpos queer e deficientes, bem aceitos em diversas performances neoliberais de inclusão a partir do discurso da diversidade, continuam sendo apresentados por narrativas de subordinação, sendo muitas vezes um utilizado como suporte para a rejeição do outro, como no caso daqueles comentários.
É precisamente essa natureza ambígua do discurso que acho útil para interpretar as epifanias heteronormativas e corponormativas. Os sujeitos ditos como heterossexuais capazes, cheios de consciência social e sucesso, se mostram tomados por revolta, ódio e crise diante da situação, pois seus “direitos foram usurpados” (leia-se: privilégios) em prol dos que desviam a norma padrão dominante.
No imaginário hetero-capacitado, as pessoas de sucesso definitivamente não são as trans, travestis, não binárias ou pessoas com deficiência. Na verdade, estes corpos são antagônicos ao conceito de normalidade e todas as vezes que aparecem em espaços que pressionam e reagem a essas sujeições narradas, são eles vítimas de ódio, ataques e de perigo real.
Em conversa com Luana, ela me expressou sua indiganação diante do ocorrido. “Eu, como figura de resistência, não me arrependo de forma alguma ter sido a imagem dessa campanha. Quando a gente coloca a diferença dentro dos muros da universidade, começamos a desmascarar o preconceito que há na sociedade. Mas nós somos filhos/as da resistência, seja transgênero, pessoa com deficiência, negro, indígena… nós sofremos diariamente por sermos quem somos e habitar um espaço que por direito deveria ser de todos nós. Mas a verdade é que viver é uma conquista diária. Ando na rua sem saber se vou voltar. Vou ao trabalho, à academia e não sei se vou voltar”.
A existência de pessoas como Luana e a existência de pessoas com deficiência que tiveram sua condição utilizada como apoio à inferiorização diante do argumento da capacidade compulsória, elas têm o potencial de perturbar a performance da heterossexualidade corporalmente capaz.
Por isso o ódio, a sujeição de direitos e as reivindicações visando desumanizar esses sujeitos, porque ambos confrontam essa performance normativa que personifica uma falsa homogeneização, de modo que que precisam ser controlados, calados e não tolerados.
Entretanto, disse finalizou Luana, “lutarmos por esse direito é muito complexo, mas estamos aqui para vencer essa crueldade. Não nos calarão – e a gente vai ocupar todos os espaços”.