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A Catarse do Carnaval: ruas e pessoas protagonistas do espaço urbano

O Carnaval, como fato, faz com que as ruas se abram para as pessoas e não para os carros. Um respiro de liberdade.

No dia 11 de fevereiro foi divulgada mais uma edição da Pesquisa OD – Origem e Destino, realizada na Região Metropolitana de São Paulo. Realizada desde 1967, essa pesquisa se consolidou como a maior e mais abrangente investigação sobre mobilidade urbana da América Latina. E os números concretos, mais uma vez, são alarmantes.

Pela segunda vez na história da pesquisa, ocorre a predominância do transporte individual (51,2%) sobre o coletivo (48,8%) do total das viagens motorizadas. Esse resultado se deve sobretudo ao aumento do uso de carros por aplicativo. Um grande retrocesso na mobilidade urbana dos últimos 20 anos. Andamos para trás em vez de avançarmos para soluções mais sustentáveis.

Enquanto isso, a Região Metropolitana do Recife (RMR) não conta com uma Pesquisa OD estruturada e ampla. Estamos no escuro, sem dados consistentes para embasar políticas públicas ou pensar em alternativas viáveis para nossas cidades. Fica a pergunta: será que o Recife está seguindo o mesmo caminho de São Paulo? Resta a dúvida sobre o possível aumento de carros e motos nas nossas ruas.

O fato concreto é que os veículos motorizados individuais, além de contribuírem diretamente para a emissão dos gases de efeito estufa (GEEs), têm um impacto significativo no aumento da temperatura nas nossas cidades. E a prova de que a situação está se agravando chegou mais uma vez com os dados divulgados no dia 6 de fevereiro pelo Copernicus, o observatório climático da União Europeia: o primeiro mês de 2025 foi o janeiro mais quente registrado.

Está pegando fogo e não é só no termômetro. Como vamos encarar o futuro se continuarmos ignorando a conexão entre o nosso transporte, o clima e a qualidade de vida nas cidades?

O fato concreto número dois é que estamos em fevereiro e estamos pegando fogo por outro motivo: o Carnaval está chegando! “Ó abre alas que eu quero passar!”, diz a marchinha composta por Chiquinha Gonzaga em 1899.

Vamos começar com uma homenagem a uma mulher que, no século 19, desafiou todas as convenções de sua época e mudou paradigmas. Chiquinha Gonzaga foi uma verdadeira revolucionária – em diversos aspectos de sua vida.

Ela foi pioneira na produção carnavalesca, na composição de peças para teatro, na dança de salão, e, claro, na música popular. Gonzaga deu voz aos ritmos do povo, como o maxixe, o lundu e a umbigada, que eram apreciados principalmente pelos pobres de origem escrava. E, para completar, Chiquinha ousou tocar violão (grave essa informação).

Mas sua revolução não parou por aí. Chiquinha foi também abolicionista em um Brasil imperial, quando poucos ousavam desafiar o status quo. Como diz a fonte sobre a vida dela, “um escândalo atrás de escândalo”.

No segundo casamento (e aqui cabe a provocação: podemos escrever isso em uma época em que, no papel, ela ainda não tinha permissão para se casar novamente?), Chiquinha acompanhou seu “marido”, um engenheiro, em suas jornadas para a construção de ferrovias. Sim, você leu corretamente: fe-rro-vias! Naqueles tempos do passado havia muitos engenheiros construindo ferrovias.

Já que tocamos no tema ferrovia, façamos uma pequena pausa no texto para falar sobre os diversos sistemas que compõem uma rede de mobilidade: você já tinha reparado que a ferrovia, metrô e bondes são sistemas mais antigos que o próprio “automóvel moderno”? Em Pernambuco, a ferrovia chegou em 1857. O bonde, inicialmente por tração animal, em 1883. E, atenção, o metrô de Londres começou a operar em 1863 – e digamos que demorou um bocado para cruzar o oceano.

Agora, se considerarmos a produção em escala do famigerado “carrinho” com a concepção do Ford T, que eu considero o marco oficial do surgimento do automóvel, isso só ocorreu em 1908(!). Talvez, dependendo da sua idade, sua bisavó ou avó tenham vivido antes do nascimento do Ford T.

Poucas gerações guardam na memória o hábito de andar pela cidade a pé ou de utilizar trem e bonde. E foi justamente a partir dos anos 50 que os automóveis, como protagonistas da “modernidade”, começaram a ocupar cada vez mais e mais os espaços das nossas ruas. E o que aconteceu com os outros meios de transporte? Foram paulatinamente expulsos da rua.

Até a ferrovia que abriu a Avenida Norte em direção ao Porto do Recife desapareceu do mapa. O bonde foi extinto. O trólebus, o ônibus elétrico, também sumiu. As pessoas? Cada dia com mais medo por diversos fatores, inclusive de serem atropeladas. Tudo e todos foram expulsos, literalmente, das nossas próprias ruas.

É preciso ter coragem e ousadia para andar por aí, ainda mais nesse calor.

Pausa da mobilidade feita, retomamos com a história de Chiquinha Gonzaga, que, desde o final do século 19, desafiava os padrões da sua época. Oportuno destacar que nossa ilustre pianista também tocava violão, um instrumento profundamente menosprezado pelas elites da época. Um instrumento abolicionista.

Será que o nosso transporte público coletivo seria o violão de outrora? A “ilusão de liberdade” que sentimos ao usar aplicativos de transporte ou ao sermos seduzidos pelo “novo empreendedorismo” é, de certa forma, uma “escravidão moderna”?

Com a provação esquentando neste texto, trago o tema mais importe dessa leitura. O Carnaval do Recife, de Olinda e de tantas outras cidades brasileiras, por breves momentos, também desafia os paradigmas da apropriação das nossas ruas. Durante esses dias, o que vemos é uma verdadeira catarse coletiva, onde os pedestres, os artistas, a música, as fantasias e o lúdico se tornam os protagonistas de nossas conversas , olhares e andanças.

O Carnaval, como fato, faz com que as ruas se abram para as pessoas e não para os carros. Um respiro de liberdade, uma ruptura temporária na rotina, onde a cultura, a alegria e a celebração da vida tomam conta da cidade. Glórias sejam dadas a esse mundo que ainda resiste e existe, mesmo que de forma efêmera e em partes limitadas das nossas cidades.

E é aí que surge um segundo “ato” revolucionário – retomando o tema mobilidade: o Expresso Folia na Cidade do Recife. No jargão técnico, trata-se de nada mais, nada menos do que um “ônibus sob demanda” – uma operação inovadora que poderia ser facilmente aplicada no nosso dia a dia, considerando os avanços tecnológicos dos últimos anos.

Porém, apegados a contratos e estruturas enraizadas do século 20 continuamos limitados a operações capengas. Por que essa inovação não pode ser adotada permanentemente? A resposta, infelizmente, reside em “contratos” ultrapassados que não se ajustam à necessidade de uma mobilidade mais ágil e adaptável. A inovação se esbarra na burocracia do passado, no conservadorismo e noutras coisinhas mais.

Outro ato instigante acontece no Carnaval: o Expresso Folia sai diretamente dos shoppings da cidade e não dos terminais de transporte. Um pouco contraditório, não acham? A justificativa: nos shoppings é possível estacionar o carro e, então, pegar o “ônibus sob demanda”. Bárbaro, estupendo, brilhante! Uma ideia inovadora que funciona na prática, ao menos durante a folia. Continuem assim.

A provocação é: por que os “terminais” de transporte público não possuem edifícios garagem, justamente para incentivar a “intermodalidade” entre o transporte individual (o “carrinho” e/ou moto) e o transporte coletivo? E por que o Expresso Folia não sai também desses pontos estratégicos, que deveriam ser hubs de mobilidade na cidade?

Será que é avançado demais melhorar a microacessibilidade ao transporte coletivo para toda a população de modo mais abrangente? Pois é… esse bug no sistema acontece justamente no Carnaval. Que folia incrível, não?

Abrir as “ruas” para pedestres, ciclistas e o transporte público coletivo todos os dias do ano requer muita coragem e ousadia. Na verdade, requer uma revolução, quebrar o status, quo como o que Chiquinha Gonzaga promoveu em sua época. Não é fácil!

No Carnaval as ruas ressurgem, se transformam e nos convidam a imaginar uma cidade mais inclusiva e justa. Aí, surge o grito:
“Ó abre alas, que eu quero passar!”, eu, pessoa, em paz e alegria.
“Ó abre alas, que eu quero passar!”, eu, ciclista, em segurança.
“Ó abre alas, que eu quero passar!”, eu, transporte público coletivo, com qualidade e eficiência.
“Ó abre alas, que eu quero passar!”, eu, rua multimodal, com calçadas, ciclovias e corredores de transporte coletivo, quero passar e ficar! A cidade é o meu lugar!
“Ó abre alas que eu quero passar!”…

Que o Carnaval seja mais do que uma festa. Que seja um lembrete do que podemos conquistar quando ousamos transformar a cidade para todos.

Bom Carnaval a todos!

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