Por Lu Sudré
Brasil de Fato | São Paulo (SP), 7 de Dezembro de 2019
“Ele me disse que a energia sexual era uma energia de cura. A energia da vida. Eu estava completamente fragilizada, os médicos não tinham dado nem três meses de vida para o meu pai. Ele era a única pessoa que dizia que o curaria. E eu acreditei.”
A voz de Ana Paula São Tiago oscila entre a indignação e a dor ao falar sobre os abusos que sofreu durante os sete meses em que morou em Abadiânia (GO). Quase 15 anos após ser estuprada e assediada repetidas vezes por João de Deus, ela faz questão de frisar que não sente mais medo em denunciá-lo: agora o suposto médium está preso e os crimes que cometeu contra ela e outras centenas de mulheres são de conhecimento público.
Há exatamente um ano, no dia 7 de dezembro de 2018, uma reportagem baseada em depoimentos de dez mulheres que acusaram João de Deus de praticar diversos tipos de violência sexual foi publicada pelo jornal O Globo e pelo Programa do Bial. Nos dias seguintes, a redoma que protegeu o líder espiritual por décadas foi quebrada por uma avalanche de denúncias nacionais e internacionais.
Hoje, João Teixeira de Faria, nome real do médium, responde por onze denúncias de crimes sexuais feitas pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO).
Famoso pela realização de “cirurgias espirituais”, o líder religioso já atendeu políticos e celebridades do mundo inteiro e está detido desde 16 de dezembro do ano passado no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital de Goiás.
Segundo informações do MP, o médium violentou pacientes espirituais ao longo dos últimos 45 anos, e 319 mulheres procuraram a Promotoria para denunciá-lo após veiculação das primeiras reportagens que começaram a expor os crimes cometidos por João de Deus.
Dessas, 194 formalizaram as acusações e ao menos 15 alegam terem sido vítimas antes dos 13 anos. Os relatos são de mulheres de todas as faixas etárias, com uma maioria de denúncias formalizadas de vítimas entre 18 e 30 anos. Teixeira de Faria nega todas as acusações.
Assim como ocorreu com muitas outras mulheres, o medo de retaliação fez com que Ana Paula formalizasse sua acusação apenas em abril deste ano, após ter certeza que João de Deus estava realmente preso. Ela se orgulha de conseguir reunir forças para continuar a expor aquele que define como a pessoa mais perversa e manipuladora que já conheceu em sua vida.
“O João de Deus não é de Deus. Você acha que está lidando com o novo Chico Xavier, mas está lidando com um monstro”, resume.
AVISO: Essa reportagem contém fortes depoimentos relacionados a episódios de abuso sexual.
“Ele agradecia a Deus pelos abusos”
De família espírita, a estilista Ana Paula São Tiago foi a Abadiânia em agosto de 2006 para que seu pai passasse por um tratamento espiritual para enfrentar um tumor no cérebro. Foi informada por João de Deus que, para que seu pai se curasse, seria necessário realizar trabalhos espirituais contínuos na Casa de Dom Inácio de Loyola.
Foi então que pai e filha decidiram permanecer o tempo que fosse necessário na pequena cidade no interior de Goiás, com menos de 19 mil habitantes. O pesadelo de Ana Paula começaria um mês depois, no dia 7 de setembro daquele ano, quando foi vítima do primeiro abuso sexual cometido pelo líder espiritual.
Ela se lembra que, por ser feriado, a Casa de Dom Inácio de Loyola estava mais cheia do que o normal. Ela segurava a foto de seu pai nas mãos enquanto participava da corrente de oração, quando foi interrompida pelo médium e convidada para ir à sua sala.
Estranhou quando João de Deus trancou a porta. Já havia ido ao local outras vezes, mas a porta havia permanecido aberta.
“Quando ele trancou, senti uma coisa horrível. Pressenti que algo iria acontecer ali. Ele deu a entender que queria fazer um trabalho espiritual para o meu pai. Me colocou de costas e começou a passar a mão em mim. Para frente, para trás, na bunda, nos seios. Quando virei, ele já estava com a calça aberta e com o órgão ereto. Eu me assustei. Não esperava isso. Pensei: ‘Ele é o João de Deus’. Na hora fiquei muito confusa”, conta Ana Paula, com apenas 23 anos na época.
Ela afirma que o médium rezou uma prece enquanto a assediava. Pôde sentir seu corpo ficar gelado quando o religioso a direcionou para uma poltrona bege e alta que havia na sala. E, em seguida, colocou a mão dela em seu órgão para que o masturbasse.
“Eu tremia muito. Fiquei um tempo em pé tremendo muito. Teve uma hora que eu ajoelhei, sentei no chão. Quando sentei, ele olhou pra mim e disse: ‘Eu ia pedir exatamente isso’.”
Desnorteada, foi levada pelo próprio médium para seu lugar na corrente de oração, onde a foto de seu pai e seu par de chinelos a aguardavam. Como se nada tivesse acontecido, João de Deus realizou a prece de Cáritas e começou os trabalhos do dia.
Muito abalada e confusa, compartilhou com uma enfermeira da casa o que havia acontecido. “Quando eu contei pra ela, ela me disse: ‘Por favor, Paulinha. Para de falar. Por favor, perdoa. Perdoa. Pode ser pior para você e para o seu pai. Fica quieta. Tinha uma gringa falando o que você está dizendo para mim e essa gringa sumiu’.”
Chorando, saiu às pressas da Casa de Dom Inácio de Loyola. Pela frágil condição de saúde de seu pai, não teve coragem de lhe contar o que havia acontecido. Ela o convenceu a voltar para o Rio de Janeiro, e o pai aceitou, com a condição de que pudesse se despedir da entidade que o tratava.
No mesmo dia, de volta ao local onde seu algoz é idolatrado, decidiu questioná-lo sobre o abuso.
“Falei que ele não podia ter feito aquilo comigo. Ele respondeu que eu não estava entendendo, que aquele era um trabalho de cura para o meu pai. Ele disse: ‘Você é o motivo do carma do seu pai. Você é o motivo do câncer do seu pai. Você representa ele no tratamento, tem que ficar com ele aqui’. Me falou algumas coisas e mexeu com minha cabeça. Me convenceu a ficar.”
Com o passar do tempo, os tratamentos espirituais mesclaram-se aos abusos, e Ana Paula se viu de mãos atadas frente à manipulação do médium. Penetrações, beijos forçados e outras formas de estupros travestidos de tratamento espiritual tornaram-se quase cotidianos.
A estilista também relata que ele ordenava que ela lhe fizesse massagens.
Sem apresentar sinais de melhoras, seu pai entrou em coma e faleceu em fevereiro de 2007, depois de sete meses morando em Abadiânia. Para que não saísse da cidade, João Teixeira de Faria lhe ofereceu um apartamento em Anápolis, também interior goiano. Seus gastos seriam custeados por ele, desde que ela trabalhasse na casa e estivesse sempre à disposição do médium.
Em meio ao luto, Ana Paula negou a proposta e retornou ao Rio de Janeiro.
Ela se cala por alguns segundos e, com a voz embargada pelo choro, afirma que entrou em uma profunda depressão nos anos seguintes. Chegou até mesmo a pensar em se matar quando conseguiu compreender o que realmente havia acontecido com ela durante o período em que morou em Abadiânia.
“Fui estuprada inúmeras vezes. Fui usada, enganada. Ele enganou meu pai, uma pessoa que estava morrendo. Meu pai podia ter morrido no Rio, perto da família e dos amigos. Mas ele usou essa desculpa [do tratamento espiritual] para estuprar a filha dele.”
Ana Paula sofreu abusos constantes durante os sete meses em que morou em Abadiânia para acompanhar o pai durante um tratamento espiritual com João de Deus (Foto: Arquivo pessoal)
Investigação
De acordo com dados do MP-GO, as vítimas que formalizaram as denúncias no último período foram abusadas entre 1973 e 2018. Ou seja, 45 anos separam o abuso mais antigo do mais recente.
A maioria das vítimas mora na região Sudeste do país. Apesar da concentração regional, foi preciso uma ação coordenada e inédita entre os Ministérios Públicos para que as denunciantes de outros estados também pudessem ser ouvidas. As oitivas foram realizadas por promotoras mulheres, de forma presencial ou por videoconferência.
Luciano Miranda, coordenador da força-tarefa responsável pela investigação, afirma que a riqueza de detalhes e uniformidade dos relatos foi o que mais impressionou e, ao mesmo tempo, assustou os promotores que acompanham o caso.
“O modus operandi dele praticamente não mudou nesses 40 anos. Temos vítimas que foram abusadas nos anos 80, vítimas abusadas recentemente, poucos meses antes dele ser preso, e a forma de agir é a mesma. São vítimas que nunca se conheceram e não irão se conhecer pela distância demográfica, pela diferença de idade. Isso chama muita atenção”, declara.
O coordenador da força-tarefa também aponta que João de Deus se aproveitava reiteradamente de vítimas que apresentavam doenças sérias como câncer ou esclerose múltipla, ou que acompanhavam familiares doentes e, portanto, encontravam-se em condição de extrema fragilidade. “Já no início, nós víamos que estávamos diante de um indivíduo que não nutria compaixão nenhuma pelos sentimentos das pessoas”, comenta.
Segundo Miranda, há a expectativa de que haja uma primeira sentença condenatória contra João de Deus ainda em 2019.
Recentemente, vítimas que pedem indenização por danos morais cujas demandas foram indeferidas em razão de prescrição, afirmaram que vão recorrer ao STJ para que a Justiça abra exceção ao considerar os seus casos.
Rede de apoio
As denúncias que foram o estopim da exposição dos crimes do guia espiritual só se tornaram públicas em razão do grupo Vítimas Unidas e do movimento de Combate ao Abuso no Meio Espiritual (Coame), que acolhem e orientam mulheres vítimas de crimes sexuais e agressões.
Maria do Carmo dos Santos, uma das fundadoras do Vítimas Unidas, coletivo criado após a grande repercussão dos abusos sexuais cometidos em uma clínica de fertilização pelo médico Roger Abdelmassih, acompanha de perto e com perplexidade o caso do médium e mantém contato direto com dezenas de mulheres.
A professora aposentada garante que João de Deus fez vítimas em 11 países e o número de pessoas ouvidas pelo MP só não é maior porque não há confiança na Justiça brasileira.
Por medo, trauma ou vergonha, Santos afirma que dezenas de vítimas não formalizaram denúncias. Ou seja: o número de vítimas de João de Deus pode ser bem maior.
Ainda assim, a ativista destaca a importância do silêncio ter sido quebrado. “Ele é a escória da raça humana. Os estupros não foram apenas psicológicos e físicos. Ele usou aquilo que o ser humano tem de mais rico, de sua essência, que é a fé.”
Foi por meio dessa rede de apoio internacional que a estadunidense Helene Sharoni conseguiu denunciar o abuso sexual do qual foi vítima em 2005.
Atualmente com 46 anos, Helene havia acabado de descobrir uma lesão cerebral causada por um acidente de carro dois anos antes. Ao saber que não havia possibilidade de intervenção cirúrgica, pesquisou procedimentos que poderiam lhe ajudar fora da medicina tradicional. Decidiu que, para acreditar, precisava ver a cirurgia pessoalmente.
Visitou Abadiânia três vezes e chegou a pensar em ser tradutora voluntária da Casa de Dom Inácio de Loyola. A última passagem pelo centro, no entanto, a fez querer sair do Brasil para nunca mais voltar.
“Eu não sabia o que fazer”
Assim como Ana Paula, Helene foi convidada a ir sozinha à sala de João de Deus. Lá, o médium colocou as mãos em seu quadril, depois nas costas e em sua cabeça. Em seguida, segurou a mão da estadunidense e pediu para ela respirar cada vez mais fundo. A cada segundo que se passava, ela sentia aumentar uma sensação estranha em seu corpo, como se um formigamento percorresse suas veias.
Foi levada por ele até sua cadeira e colocada de joelhos, com a cabeça entre os coxas do médium.
Quase 15 anos se passaram, mas Helene se recorda de todos os detalhes. “Ele colocou os dedos entre meus dentes, abriu a minha boca, e a colocou no seu pênis. Eu não sabia o que estava acontecendo. Se aquilo era um alinhamento de chakra, uma cura sexual. Mas pensei que aquela era minha oportunidade e eu tinha que seguir, se não perderia única chance de cura. Ele dizia: 'Movimentos de boca, mais profundo, mais profundo'. Agora nove vezes, agora 11 vezes. Eu mexia minha boca como um peixe. Então o João ejaculou na minha boca... Eu não sabia o que fazer com aquilo”, conta, repetindo em português as palavras proferidas por João de Deus.
Depois do abuso, a estadunidense passou três dias sem conseguir falar com outras pessoas da casa. Deixou de ir às meditações e abandonou as correntes de oração.
Lidando sozinha com o trauma causado por João de Deus, decidiu procurar uma trabalhadora do local chamada Marisa, com quem já havia estabelecido contato outras vezes.
Teve que ouvir de Marisa que ela havia passado por uma “profunda limpeza espiritual” e não por um abuso sexual. Mais um exemplo do nível de manipulação e conivência que existia na Casa Dom Inácio de Loyola em relação aos crimes de João de Deus.
Helene procurou sua irmã, que morava na cidade de Tel Aviv, em Israel, e lhe contou o que havia acontecido. Foi orientada, por telefone, a “deixar de lado essa loucura espiritual”. Assim o fez.
Acolhida por sua família, decidiu denunciar o médium assim que chegou a Israel e enviou uma carta para a embaixada brasileira no país. Sem receber resposta, realizou uma segunda tentativa alguns meses depois e foi pessoalmente à embaixada brasileira localizada em Viena, na Áustria, enquanto viajava. Disseram a ela que a denúncia seria encaminhada às autoridades responsáveis, mas, até hoje, nada aconteceu.
Moradora do Colorado, nos Estados Unidos, Helene chegou a ser contatada pelo programa de Oprah Winfrey, uma das apresentadoras de televisão mais importantes do país, e por outras pessoas que produziam filmes e documentários sobre a Casa de Dom Inácio de Loyola. Ela se recusou a falar com todos. “Tinha medo de que João me matasse.”
Precedentes
O receio da retaliação não é por acaso. Os entrevistados repetem por diversas vezes que, em Abadiânia, correm muitos boatos de que o religioso já assassinou ou mandou matar mulheres que violentou para não ser denunciado.
Quase quatro meses após os primeiros casos serem divulgados pelo programa do apresentador Pedro Bial, na TV Globo, foi revelado pelo programa Fantástico que uma mulher teria sofrido uma tentativa de assassinato por parte do médium após ser estuprada em Alexânia (GO). O crime teria ocorrido em 1973 e a vítima teria, à época, 17 anos.
A reportagem também abordou outros casos pelos quais João Teixeira havia sido denunciado, mas que foram arquivados. Entre eles, dois assassinatos, tráfico de cocaína e de autunita, material radioativo. Conforme registrado pelo Fantástico, para o Ministério Público as denúncias indicam que o médium contava com uma rede de proteção formada por autoridades de Abadiânia, incluindo delegados e policiais.
O grupo Vítimas Unidas também denuncia que apoiadores de João de Deus têm ameaçado as mulheres que denunciaram o médium, assim como as ativistas que atuam na rede de apoio. Maria do Carmo, por exemplo, solicitou proteção à Organização dos Estados Americanos (OEA).
O médium João de Deus foi indiciado por violação sexual mediante fraude e está preso desde 16 de dezembro de 2018 (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Cidade conivente
O religioso segue detido um ano depois da veiculação das primeiras denúncias, mas as duas vítimas ouvidas pelo Brasil de Fato argumentam que a justiça ainda não foi feita. Para elas, isso só acontecerá quando todas as pessoas coniventes com os abusos sexuais também forem investigadas e devidamente julgadas.
Segundo Maria do Carmo, as mulheres mais jovens de Abadiânia crescem com a orientação de tomar cuidado com o médium. Baseada nas dezenas de relatos que recebeu, assegura que outras pessoas foram coniventes com os abusos sexuais por décadas. Entre elas, trabalhadores da casa em que o líder espiritual atuava, donos de pousadas, guias turísticos e tradutores que lucram com o império criado por João de Deus.
A integrante do grupo Vítimas Unidas denuncia que diferentes mulheres que sofreram abusos citam frequentemente os nomes de, pelo menos, quatro outras pessoas.
“As vítimas falam sobre tradutores e guias que responderam assim quando elas eram estupradas: 'João é de Deus. Tudo que ele faz é de Deus. Então não é pecado porque é Deus fazendo'. São inacreditáveis as histórias que ouço. É surreal”, diz a integrante do Vitimas Unidas.
“Os abusos sexuais só aconteceram porque o governo brasileiro, em todas as instâncias, se omitiu. Se a casa estivesse regularizada, com guias credenciados, essas pessoas não seriam capachos do João e não permaneceriam caladas. Eu não tenho a menor dúvida de que os tradutores todos sabiam, sem exceção. Todas as enfermeiras sabiam”, acusa.
Helene Sharoni corrobora com a denúncia e relata o que escutou. "Eu falei com guias da França, do Canadá e da Inglaterra. Eles me disseram para não falar o que o João havia feito comigo. Que as pessoas tinham esperança e que a esperança trazia a cura. Disseram: 'Você não pode tirar a esperança deles'."
Questionado pela reportagem do Brasil de Fato, Luciano Miranda, coordenador da força-tarefa do MP-GO, afirma que outras pessoas estão sendo investigadas por envolvimento nos casos.
A Casa dos Crimes
Os abusos trouxeram à tona uma série de outras acusações contra João Teixeira de Faria, integrantes de sua família e outros trabalhadores da Casa de Dom Inácio de Loyola. O médium também é investigado por corrupção de testemunha, coação, corrupção ativa e falsidade ideológica.
Sandro Teixeira, filho de João, também foi acusado na ação penal por coação de vítimas e testemunhas. Ambos receberam habeas corpus em março de 2019, mas seu pai permaneceu detido devido aos outros crimes dos quais é acusado.
Em novembro deste ano, o médium foi condenado a quatro anos de prisão em regime aberto por porte ilegal de armas de fogo. No entanto, Ana Keyla Teixeira Lourenço, esposa do religioso e que também era ré do processo, foi absolvida.
Com os holofotes focados em Abadiânia, o histórico de João tornou-se público: Teixeira de Faria fez fortuna garimpando ouro em Serra Pelada, o "eldorado" do Pará, no início da década de 80. Em 1985, chegou a ser detido sob acusação de contrabando de 300 kg de autunita, minério com alto teor de urânio.
Décadas depois, o garimpo, a lapidação e a negociação de pedras preciosas ainda estão entre suas atividades. Ele também foi investigado após ser acusado de vender pedras falsas como verdadeiras e pelo exercício ilegal de medicina.
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A origem da fortuna de João de Deus também está na mira da polícia. Assim que o líder espiritual foi preso, foi encontrado mais de R$1 milhão em propriedades ligadas a ele, assim como uma quantidade relevante de pedras preciosas.
Em junho do ano passado, o médium foi acusado de construir um "império" por meio da extorsão de fiéis, lavagem de dinheiro e prática de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Segundo reportagem do jornal O Globo, um relatório feito pela força-tarefa que investiga o caso o aponta como chefe de uma organização criminosa. As provas analisadas incluíram dois relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que detalharam transações milionárias nas contas do médium e seus aliados.
E-mails, depoimentos de testemunhas e escrituras de imóveis também foram analisadas pelos investigadores, que suspeitam que o médium possa ter acumulado ilegalmente valores acima de R$ 100 milhões, em mais de três décadas.
Uma vida por justiça
É impossível falar do caso João de Deus sem citar Sabrina Bittencourt, ativista que estava na linha de frente na rede de denúncias contra ele. Vítima de abuso sexual dentro da comunidade mórmon na infância, Sabrina foi cofundadora do Coame e dedicou a vida em defesa de grupos vulneráveis de forma voluntária.
Ao Brasil de Fato, afirmou que preparava material para expor ao menos 13 outros líderes religiosos. Alvo de ameaças de morte por sua atuação internacional, precisava mudar de endereço constantemente.
Além das acusações de abuso sexual, Sabrina também foi responsável por fortalecer as denúncias de que o médium praticava garimpo ilegal. Em depoimento ao Ministério Público de São Paulo (MP-SP) no início deste ano, ela relacionou João ao tráfico internacional de bebês e crianças.
“A gente tem recebido relatos, desde as mães adotivas dessas crianças que foram vendidas por US$ 20 mil (cerca de R$ 74 mil) a US$ 50 mil (cerca de R$ 185 mil) na Europa, nos EUA e na Austrália, até ex-funcionários e cidadãos de Abadiânia que estão fartos de serem coniventes com a quadrilha de João de Deus”, explicou Bittencourt em vídeo publicado no Facebook na época.
O MP-SP, por sua vez, encaminhou as informações ao Ministério Público Federal (MPF) com um pedido formal para que fossem investigadas. Procurado, o órgão não respondeu questionamento da reportagem com a atualização do caso até a publicação desta reportagem.
Com a pressão das perseguições e as constantes ameaças de morte, a ativista cometeu suicídio no dia 3 de fevereiro deste ano, conforme informado por sua família. Para dar continuidade ao legado de sua mãe, Gabriel Baum, filho mais velho de Sabrina, se apropriou das lutas e bandeiras defendidas pela ativista.
Com proteção no exterior, tornou-se porta-voz do Coame e acompanha denúncias em nível federal. Em relação aos crimes de João de Deus, avalia que as investigações poderiam estar bem mais avançadas. Mas, em comparação com as décadas de blindagem dos crimes do médium, acredita que há avanços.
“João, para milhões de pessoas, foi um santo. Para milhares, foi um demônio. Ele tinha um centro espiritualista de fachada. A Justiça que o Código Penal propõe só funciona para os pobres. Para os ricos e poderosos, não. Estou satisfeito por uma parte. Pelo menos ele foi desmascarado em vida, evitando centenas de novos abusos no espaço dele. E não só por ele, mas pelos homens que os protegiam e também abusavam de mulheres e menores de idade”, disse Baum ao Brasil de Fato, com exclusividade.
Ele destaca que a articulação de sua mãe ajudou vítimas a terem suas vozes ouvidas e respeitadas.
“Elas vão poder dizer para filhas e netas que alguém acreditou nelas. Que lutaram por elas. O Natal de 2018 foi um Natal onde milhões de famílias falaram na mesa sobre o tio, sobre o pai e sobre o avô abusador, graças ao que saiu na mídia sobre o João. Tudo é um processo coletivo. Escândalos assim fazem com que, de pouco em pouco, as pessoas não aceitem mais o silêncio, a omissão, o famoso 'passar pano’. E isso onde existem pessoas em lugares vulneráveis como igrejas e seitas.”
Gabriel Baum sabe de cor e salteado “a lista interminável” de todos os crimes relacionados a João Teixeira de Faria. E se revolta ao citar todos os questionamentos e tentativas de mudança de narrativa sobre a morte de sua mãe.
Entre as fake news criadas, segundo Baum, reportagens questionaram a idoneidade de Sabrina, apontando sócios ou ex-sócios que sequer existem, além de divulgarem que ela havia criado mais de 30 organizações não governamentais com dinheiro público e ainda que a ativistas não estava em condições psicológicas estáveis.
“Tudo que ela fez de bom tentaram mostrar que era mentira ou feito com más intenções. Não foram capazes de fazer um perfil sobre ela mostrando a realidade. Ligaram para jornalistas dizendo que eles foram enganados pela minha mãe. Mas para cada fake news que criaram, para cada perseguição que fizeram, tenho muito material pra rebater e milhares de pessoas como testemunhas”, comenta o jovem.
Ele acrescenta ainda que não permitirá que “corruptos e fanáticos” destruam a história de vida de sua mãe com o objetivo de fazer as famílias se calarem. “Ela foi obrigada a se matar, ao contrário do que a mídia publicou.”
Um ano após o estopim que desmascarou João de Deus, Gabriel Baum espera que os casos de abusadores denunciados por sua mãe, pelo Coame, pelo grupo Vítimas Unidas e por todas as mulheres que vieram a público, possam trazer as mudanças necessárias para que esses crimes nunca mais aconteçam.
Procurado, o escritório Van Gualberto Advogados Associados, responsável pela defesa do médium, não atendeu a reportagem.
FICHA TÉCNICA
Reportagem: Lu Sudré | Edição: Vivian Fernandes e Aline Scátola | Artes: Gabriela Lucena | Coordenação de Jornalismo: Vivian Fernandes, Camila Maciel e Daniel Giovanaz | Coordenação Multimídia: José Bruno Lima