Por Juca Guimarães e Jéssica Moreira
A população brasileira de negros e pardos, segundo os dados mais recentes do IBGE, soma 114,8 milhões de pessoas. Ou seja, mais da metade dos 207,1 milhões de habitantes do país.
Em 1533, de acordo com o registro mais antigo sobre a escravidão no Brasil, o sangue negro corria nas veias de apenas 17 indivíduos. Não se sabe quantos eram homens ou mulheres, pois todos vieram na condição de escravizados, para trabalhar nas terras da capitania hereditária de São Tomé -- território que hoje se localiza entre o sul do Espírito Santo e o norte do Rio de Janeiro. O trabalho não tinha remuneração. A vida era sem liberdade e sem dignidade.
No porão do navio, junto aos primeiros 17 homens e mulheres negras escravizadas, veio também a semente de um sonho de liberdade, de uma pátria humanitária, democrática e sem desigualdade. Uma nova concepção de mundo, que se forjou nos corações e mentes de um povo guerreiro.
A resistência vem desde os malês, africanos muçulmanos que organizaram um grande levante em Salvador, até as mulheres e homens que construíram os quilombos e seus espaços de liberdade e de religiosidade, onde são preservadas a cultura e a ancestralidade do povo negro. Nos 485 anos seguintes, os descendentes daqueles 17 africanos e dos que vieram depois deles, lutaram pela liberdade, pelo fim da escravidão e, muito além disso, combateram em todas as frentes de batalhas por direitos democráticos, contra o autoritarismo, pela soberania nacional e a unidade do país. Um Brasil de todos e sem discriminação.
“É necessário contar a história sobre a nossa perspectiva. Somos nós os agentes da nossa libertação” , disse o historiador e escritor Carlos Machado, autor do livro “Gênios da Humanidade: Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente”, pela DBA Editora.
A luta contra o racismo é prioritária para a vitória contra a desigualdade social e a repressão. A resistência se dá diariamente e em diversas frentes de batalha, como nos ensina a escritora Conceição Evaristo, ganhadora do prêmio de literatura Jabuti e militante histórica do movimento negro no Brasil. Sua obra, reconhecida internacionalmente, é fundamentada nas questões raciais e no protagonismo negro.
O exemplo também vem das rebeliões, levantes e insurgências protagonizados pelos negros e negras no Brasil. Embora seja uma memória constantemente alvo de tentativas de invisibilização. “Aqui em São Paulo, por exemplo, tem placas indicando onde é a primeira igreja, que monumento representa o quê, porém, não tem nenhuma placa dizendo onde nossos antepassados eram vendidos, onde eram torturados, onde era o cemitério. É uma memória pouca divulgada. Nós fizemos a História. Não há História do Brasil sem a população de origem africana. Fizemos a História, mas ficamos sem memória”, afirmou o professor Machado.
O Brasil de Fato produziu uma série de três vídeos tratando sobre a luta de resistência da população negra no Brasil: intolerância religiosa, genocídio dos jovens e cultura.
A preservação da ancestralidade e da religiosidade presente nos terreiros de candomblé, da umbanda e do catimbó-jurema também faz parte desta luta cotidiana pela preservação da história. As religiões de matriz africana seguem na resistência contra todo tipo de ataques e difamações. “É um racismo religioso que vem ao longo dos anos, desde o rapto dos negros africanos. A partir do momento que o negro começa a fazer o exercício da sua religiosidade, aquilo é demonizado”, afirma a sacerdotisa Ìya Omin Efun Lade.
A perseguição às religiões de matriz africana também acontece nos meios de comunicação, contrariando a Constituição. “No Estado laico, como o nosso, uma TV que só mostra e só fala da religião dela. Que não mostra a diversidade com respeito, também está promovendo uma forma de fascismo”, disse a deputada estadual Leci Brandão.
Os escritores Dona Jacira, autora da obra "Café", com poesias e textos biográficos, e Allan da Rosa, que é historiador e autor do livro "Zumbi Assombra Quem?", relatam a importância e a riqueza da cultura africana, principalmente na formação da autoestima dos jovens. Das diversas manifestações culturais e de resistência por espaço e contra o apagamento da voz negra.
A consciência e a resistência negras se formam no grito de denúncia do Movimento Mães de Maio contra o genocídio da população negra. Contra o assassinato e o encarceramento de jovens excluídos desde o nascimento de qualquer tipo de assistência do Estado. Sem perspectivas à vista e sempre na mira do braço armado repressor.
Em maio de 2006, por conta da represália aos ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) foram registradas mais 500 mortes violentas no Estado de São Paulo, em dez dias, grande parte das vítimas eram negras.
A violência do racismo espreita a pele negra a todo momento e todos os lugares. Como revela o advogado Sinvaldo José Firmo. Ele e o filho de 13 anos estavam perto do estádio do Pacaembu, em São Paulo, em maio de 2010, quando um policial apontou a arma para a cabeça do garoto, durante uma abordagem violenta, em seguida, o policial e a equipe que estava com ele também intimidaram o advogado. Em 2018, a Justiça condenou o Estado pela abordagem violenta e o caso se tornou uma importante jurisprudência contra os abusos da PM.
Como afirma a escritora Conceição Evaristo, a celebração da Consciência Negra é também um momento importante para, brancos e negros, refletirem sobre o racismo, suas raízes e suas consequências.
Mais de 5 séculos de resistência
Coordenação de Jornalismo: Nina Fideles | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima | Texto: Juca Guimarães e Jéssica Moreira |Arte e programação: Fernando Bertolo | Imagens: José Eduardo Bernardes e Marcelo Cruz | Edição: Marcelo Cruz | Fotos: Marcelo Cruz