Por Mariana Lemos e Marcos Hermanson
Brasil de Fato | São Paulo (SP), 4 de Novembro de 2019
Político, escritor, revolucionário. Nascido na madrugada de 5 de dezembro de 1911, em Salvador (BA), Carlinhos, como era chamado pela vizinhança, foi um dos sete filhos da baiana Maria Rita do Nascimento e do imigrante italiano e anarquista Augusto Marighella.
Anos depois, o garoto viria a se apresentar em seus escritos: “Descendo de italiano. Meu pai era operário, nascido em Ferrara. Chegara como imigrante a São Paulo e se trasladara à Bahia. Minha ascendência por linha materna procede de negros haussás, escravos africanos trazidos do Sudão e afamados na história das sublevações baianas contra os escravistas”.
Àquela altura, em plena República Velha (1889-1930), ninguém cogitava que o Brasil viveria, dentro de algumas décadas, uma ditadura militar.
Marighella adquiriu o hábito da leitura desde cedo. Conta-se que, quando criança, ele costumava perguntar ao pai por que os pobres trabalhavam a vida toda e nunca tinham nada.
Na juventude, arriscou-se a escrever os primeiros poemas, principalmente de sátira. Com incentivo dos pais, ingressou no curso de Engenharia da Escola Politécnica da Bahia. Naquela época, eram poucos os que podiam estudar, e esse privilégio causava-lhe mais incômodo que satisfação.
Carlinhos iniciou, então, uma aproximação com a Juventude Comunista de Salvador. Com os novos companheiros, ele foi preso pela primeira vez, sob o governo do interventor Juracy Magalhães. Além de escrever poemas denunciando o autoritarismo e a censura, ele participou de manifestações estudantis. Ao sair da prisão, passou a militar efetivamente naquela organização.
Com 25 anos, em 1936, Marighella foi transferido para o Rio de Janeiro para ajudar na reorganização do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O partido tinha realizado a chamada “intentona comunista” um ano antes e vinha sofrendo com a repressão da polícia de Getúlio Vargas.
O militante baiano passou a integrar o Comitê Central do “Partidão” e, nas manifestações do 1º de maio de 1936, é preso pela segunda vez. Torturado e encarcerado por cerca de um ano, ele é libertado e entra na clandestinidade, mudando-se para São Paulo em 1937.
Marighella com a bancada comunista Constituinte, 1946
Em 1939, já sob a ditadura do Estado Novo, Marighella torna-se preso político pela terceira vez. Ele morava em um aparelho – local clandestino destinado a realização de reuniões e ao abrigo de militantes – na Rua Abolição, 380, centro da capital paulista. Desta vez, foi privado da liberdade por seis anos. Primeiro no presídio de Fernando de Noronha e depois no da Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro.
Com os companheiros de cárcere, ele estudava, confeccionava artesanato e organizava peças de teatro. Na prisão, o baiano alfabetizou companheiros e aprendeu a falar inglês.
Em abril de 1945, com a anistia do Estado Novo (1937-1945), Marighella e os demais presos políticos do regime foram libertos, incluindo Luís Carlos Prestes. No governo do General Góis Monteiro, o PCB voltou à legalidade.
Nas eleições constituintes realizadas em dezembro daquele ano, Marighella é eleito deputado federal pela Bahia. O Partidão também elegeu Prestes para o Senado e mais de 40 deputados estaduais. Naquele período, Marighella teve um breve relacionamento com Elza Sento Sé, operária da empresa Light que deu à luz a seu único filho, Carlos Augusto Marighella, em maio de 1948, no Rio.
Em 1947, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, o PCB tem seu registro novamente cassado e, no ano seguinte, os deputados constituintes têm seus mandatos interrompidos.
É o retorno de Marighella à clandestinidade.
Ainda como deputado, Marighella conhece a secretária Clara Charf, que trabalhava para a bancada do PCB. Deste encontro, nasce um romance que duraria até o final de sua vida, há exatos 50 anos.
Pouco depois do golpe militar de 1964, Marighella caminhava pelo centro do Rio de Janeiro quando desconfiou estar sendo perseguido por agentes da repressão. Para despistar, entrou em um cinema qualquer, na sessão matinê. A sala estava cheia de crianças. Mesmo assim, os militares perceberam seu movimento, entraram no cinema e o balearam.
Marighella preso político durante o Estado Novo
Ferido, Marighella tentou resistir à prisão aos gritos de “abaixo a ditadura”. Solto no ano seguinte, escreveu o livro “Porque resisti à prisão”, em que se posiciona politicamente frente à ditadura (1964-1985).
Contrário à linha de conciliação que o PCB adotou após o golpe, Marighella mergulhou de cabeça em uma disputa interna. Para ele, não havia saída senão a luta de guerrilha.
As divergências vieram à tona no Congresso Estadual do partido em São Paulo, e seriam discutidas nacionalmente meses depois. Porém, antes da realização do 6º Congresso Nacional do PCB, o Comitê Central, liderado por Prestes, expulsou a ala divergente.
No final de 1967, o grupo excluído criaria, em São Paulo, a Ação Libertadora Nacional (ALN).
Ao lado de nomes como Joaquim Câmara, Raphael Martinelli e da companheira Zilda Xavier, Marighella passa a liderar a maior organização de guerrilha contra a ditadura militar. Imediatamente, torna-se o inimigo número 1 do regime.
Na noite de 4 de novembro de 1969, Carlos Marighella foi assassinado em São Paulo, em uma emboscada na altura número 800 da Alameda Casa Branca, região do Jardim Paulista.
Comandada pelo delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Sérgio Paranhos Fleury, a armadilha utilizou da relação que Marighella tinha com os freis dominicanos para marcar um falso encontro. O baiano foi atingido por cinco tiros, um deles disparado a menos de 8 centímetros de distância do peito.
Embora a vítima portasse uma arma e duas ampolas de cianureto, para envenenamento, o ex-deputado não teve tempo de se defender. Horas depois, foi enterrado como indigente no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo. Em 1979, seus restos mortais foram transferidos para o cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador, sob um túmulo feito por Oscar Niemeyer.
O homem simples, que não teve tempo para ter medo, recebeu em sua homenagem, no local do seu assassinato, uma pedra com os dizeres: "Aqui tombou Carlos Marighella em 4 de novembro de 1969, assassinado pela ditadura militar". Todos os anos, na Alameda Casa Branca, são realizadas homenagens a sua vida, luta e memória.
Com a palavra, a Ação Libertadora Nacional
O advogado e ex-guerrilheiro da ALN Aton Fon era funcionário da Folha de S. Paulo quando conheceu Marighella, por intermédio do companheiro e antigo comunista João Adolfo da Costa Pinto.
Fon descreve a admiração que sentia pelo velho Carlos: “Eu era muito inexperiente. Sentia reverência por ele. Para mim, ele era um puta dirigente, era o cara”.
Em uma ocasião, enviado para treinamento em Cuba, Fon recorda que Marighella interveio contra os dirigentes do PCB que impediam os colegas de deixar os alojamentos na Ilha: “Os companheiros que estavam na função de coordenar o grupo estabeleceram uma série de proibições. Não podia sair, não podia conversar... Aí, ele foi e falou: ‘Tem mais é que sair mesmo. Tem mais é que conhecer. Vocês estão tendo a oportunidade única de conhecer um país em que o povo está construindo o socialismo’”.
A expulsão de Marighella e outros nove dirigentes do partido por divergências com a linha proposta por Prestes ocorreu logo na volta de Cuba, em 1967. Conciliação com a burguesia nacional e resistência pacificamente à ditadura, para eles, estava fora de cogitação.
Esse coletivo de dissidentes seria conhecido como o Agrupamento Comunista de São Paulo, e tinha respaldo junto às bases do Partidão.
“Nunca rompemos com o comunismo, mas o comunismo nos expulsou”, conta Paulo Cannabrava, jornalista veterano e também companheiro de Marighella. Ele lembra que o primeiro manifesto do Agrupamento Comunista foi redigido em sua casa, no ano de 1967.
Com aquele texto, lançaram-se as bases para criação da ALN, organização que se tornou conhecida nacionalmente após o sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick e a tomada da antena da Rádio Nacional.
Vasculhando suas memórias, Cannabrava relembra um dia em que Marighella apareceu na porta de sua casa e o convidou para um passeio no bairro. “Ele era muito temerário. Aparecia em casa de peruca [e dizia]: 'Vamos andar, vamos andar'. Pô, meu, você acha que ninguém vai te conhecer?”, recorda Paulo, aos risos.
“[Marighella representa para mim] o comunismo na sua essência, que é o amor aos outros, ao próximo, o amor à humanidade, a entrega”, conclui o antigo integrante da Prensa Latina – ao logo de nomes como Alberto Granado e Gabriel García Márquez – e criador do portal Diálogos do Sul, ao descrever o antigo companheiro.
Em sua casa na zona Oeste de São Paulo, a socióloga e ex-guerrilheira Ana Corbisier conta que integrava o Grupo Tático Armado (GTA) da ALN, comandado por Virgílio Gomes da Silva, morto dois meses antes de Marighella.
Corbisier era responsável por transportar o dirigente entre os aparelhos: “O Marighella se hospedava na casa do Carlos Knapp, um publicitário badalado na época. E o Carlos Knapp morava a 200 metros do comandante do Segundo Exército”, lembra.
“Eu levava o Marighella para casa. E o aparelho em que ele estava, ali em Higienópolis, era perto da Polícia Federal. Daí eu dizia: 'Preto, é muito perto dos homens’. E ele respondia: 'Melhor lugar. Melhor ficar perto dos homens'. De fato, lá ele estava ao lado do comandante do Segundo Exército, e aqui ele estava ao lado da Polícia Federal”.
Filha do filósofo e deputado federal cassado após o golpe de 1964, Roland Corbisier, ela rememora o dia em que o pai e o dirigente da ALN se encontraram: “Meu pai quis conversar com o Marighella e eu o levei. Ele queria participar [da ALN], mas o Marighella sacou que ele não era disso. Não que meu pai fosse covarde, mas não era a dele. Ele era um intelectual. Aí, o Marighella falou para ele: 'Continua denunciando, continua escrevendo...'”.
“Ele foi muito importante para mim. Eu era ligadíssima ao meu pai, mas eu não senti quando meu pai morreu o que eu senti quando o Marighella morreu”, conta Corbisier, emocionada, ao reviver a morte do amigo a quem chama carinhosamente de Preto.
Nascido no ano de 1944, Gilberto Belloque, administrador de empresas aposentado, tinha 23 anos quando ingressou nas fileiras da ALN. Ele integrava um grupo de ações de agitação e propaganda conhecido como Grupo Tático B (GTB), de atuação paralela ao Grupo Tático Armado (GTA). Belloque lembra que, naquela época, alguns companheiros – a maioria, oriundos da dissidência estudantil do PCB, depois integrada à ALN – preocupavam-se com a militarização da organização e com o diálogo com os trabalhadores. Por isso, decidiram criar um grupo paralelo, voltado a ações de cunho estritamente político.
Foi de Belloque e de seu amigo e companheiro de organização José Carlos Sabbag que surgiu a ideia de tomar a antena da Rádio Nacional e transmitir um discurso redigido por Carlos Marighella. Em 15 de agosto de 1969, 19 dias antes do sequestro do embaixador, um comando do GTB entrou nas dependências da antena da Rádio Nacional, em Diadema (SP). A Rádio, de propriedade do Grupo Globo, transmitiu por cerca de 30 minutos uma mensagem locutada pelo próprio Belloque.
“Atenção, muita atenção! Senhoras e senhores: tomamos esta emissora para transmitir a todo o povo uma mensagem de Carlos Marighella”, dizia o militante no início da gravação.
Questionado sobre as características mais marcantes de Marighella, o ex-integrante da ALN relembra a capacidade criadora e a liberdade que o dirigente dava aos companheiros: “Havia muitas facetas interessantes na personalidade dele, mas acho que a principal é a criatividade, a capacidade de inovação. Marighella rompeu com as estruturas do centralismo democrático. Entre as máximas que ele propagava, uma dizia: ‘Ninguém precisa pedir licença para fazer a revolução’”.
Domingos Fernandes foi quem datilografou o Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano, obra-prima de Marighella. “Esse livro foi a coisa mais bonita que ele [Marighella] escreveu”. O companheiro também lembra que “a ALN se formou na casa da Zilda [Xavier]”. Domingos foi um dos melhores amigos de Iuri, um dos filhos de Zilda, assassinado pela ditadura.
Domingos conta que Marighella gostava do apelido que recebeu dos companheiros mais próximos. “Ele gostava de ser chamado de Preto. Primeiro, porque ele era preto mesmo e tinha orgulho da sua história. Depois, porque a gente geralmente não podia falar o nome das pessoas”.
Rose Nogueira, também ex-militante da ALN, em entrevista por telefone, lembra que o delegado Fleury a prendeu e matou Marighella no mesmo dia. Ao descrever Marighella, ela usa a expressão “homem doce”. Dias antes de dar à luz a seu único filho, ela recebeu das mãos dele o livro Parto sem dor, publicado pela primeira vez em 1959.
Outras formas de diálogo
Em uma das cenas do documentário Marighella – produzido em 2012 pela sobrinha de Clara Charf, Isa Grispun –, a viúva do guerrilheiro pergunta: “Você sabe como o comunismo chegou na Bahia?”. Sorrindo, relata que, por volta de 1935, o estado sediou um encontro de integralistas, radicais de extrema-direita admiradores do fascismo. “Ele [Carlos] chamou um grupo de jovens, comprou cartolinas, e fizeram a foice e o martelo. Esperaram chegar de noite, subiram nos postes e penduraram as cartolinas. No dia seguinte, quando o povo despertou – e a reação também –, começaram a dizer: ‘O comunismo chegou na Bahia’”.
Carlos nasceu em uma família que carregava consigo traços culturais distintos, mas unificados por um sentimento de indignação e luta por justiça social. Desde jovem, ele se interessava em propagar as ideias comunistas e de liberdade, seja por meio de poemas, da ação visual de rua ou da produção de panfletos e jornais. No PCB, Marighella também assumiu tarefas de produção gráfica, literatura e propaganda.
Material apreendido no aparelho de Marighella em maio 1936
No Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano, escrito em 1969, Marighella pontua que “a guerrilha urbana comprometida com a imprensa clandestina facilita enormemente a incorporação de um grande número de gente na batalha revolucionária, abrindo um trabalho permanente para aqueles que desejam trabalhar com a propaganda revolucionária. Gravações em fita, a ocupação de estações de rádio, o uso de alto falantes, desenhos em paredes e em outros lugares inacessíveis são outras formas de propaganda”.
Iara Xavier Pereira -- filha de Zilda Xavier, que foi dirigente da ALN ao lado de Marighella -- também chegou a integrar as fileiras da organização. Em entrevista por telefone ao Brasil de Fato, ela relembra que foi locutora da vinheta da Rádio Libertadora. Criada por Marighella, a emissora transmitia gravações de mensagens políticas chamando a população para a resistência contra a ditadura e o imperialismo. Iara conta que a rádio, para além dos discursos, tocava músicas de protesto contra a ditadura.
O trecho que ela locutava abria a gravação: “Atenção! Está no ar a Rádio Libertadora. Em qualquer parte do Brasil, para os patriotas de toda a parte. Rádio clandestina da revolução. O dever de todo o revolucionário é fazer a revolução. Abaixo a ditadura militar!”.
Dezenas de livros, documentários, músicas e peças de teatro foram lançadas nos últimos 50 anos para desvendar ou homenagear o lendário Marighella. A música Mil faces de um homem leal, do Racionais MC's, lançada em 2012, contribui para manter viva a memória do guerrilheiro baiano entre os jovens. O clipe da música traz trechos da Rádio Libertadora e remonta o cenário da tomada da antena da Rádio Nacional pela ALN. Na produção, Mano Brown interpreta Marighella. Para o ator e diretor Wagner Moura, “não tem no Brasil alguém mais Marighella do que Brown. Poeta e guerrilheiro, amoroso e agressivo”.
Em novembro de 1999, quando completavam-se 30 anos do assassinato, os intelectuais Vladimir Sacchetta, Márcia Camargos e Gilberto Maringoni lançaram o livro A imagem e o gesto – Fotobiografia de Carlos Marighella, pela Editora Perseu Abramo. A obra remonta a vida de Marighella com fotografias dele, da família e dos companheiros. Além disso, o material contém poemas escritos pelo guerrilheiro, peças gráficas da ALN, fichas policiais das prisões políticas e uma foto rara do enterro do revolucionário baiano, onde ele aparece cercado por trabalhadores do cemitério. Na apresentação do livro, escrita por Apolônio de Carvalho, há uma das descrições mais complexas e intrigantes de sua personalidade:
“Em Marighella se combinaram muito bem a força do militante determinado e uma natureza humana fascinante. A mistura, em seu sangue, da vitalidade das culturas da Itália e da África, filho que era de um imigrante anarquista e de uma descendente de escravos, deve ser uma explicação forte para o seu jeito de ser. Humano, afetuoso, sensível, amigo. Avesso às formalidades e à rigidez dos dogmas, era uma pessoa criativa, alegre, independente, capaz de surpreender companheiros com visitas durante a madrugada, em plena clandestinidade, para passar horas à beira do fogão conversando sobre a vida. Versátil, demonstrou capacidade de atuar nas mais diferentes áreas de atividade”, escreveu o autor, que foi um dos dirigentes comunistas brasileiros enviados à Guerra Civil Espanhola e à Resistência Francesa contra as tropas nazistas.
Também na tentativa de recuperar sua trajetória, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, que desde 1978 “subverte a estrutura das salas de espetáculos”, apresenta desde 2008 o espetáculo de rua O Amargo Santo da Purificação. Na descrição, os organizadores explicam que a peça “parte dos poemas escritos por Carlos Marighella que, transformados em canções, são o fio condutor da narrativa, utilizando elementos da cultura afro-brasileira e figurinos com fortes signos, criando uma fusão do ritual com teatro e dança”.
Isa Grinspum Ferraz lançou em 2012 o já citado documentário Marighella, que traça uma história contada a partir de depoimentos de homens e mulheres que conviveram com o guerrilheiro – companheiros de luta, amigos e, claro, Clara Charf e Carlinhos, viúva e filho de Marighella. Para além dos depoimentos, o filme traz, com narração de Lázaro Ramos, poemas escritos desde a juventude, na Bahia.
Marighella também vive em canções como Um Comunista, de Caetano Veloso, espetáculos de teatro e dança como Não tive tempo para ter medo, da Cia Carne Agonizante, em uma história em quadrinhos que será lançada em breve, com roteiro de Rogério Faria e desenhos de Ricardo Sousa, assim como em inúmeros livros e produções independentes, fruto do imaginário popular que o baiano tanto admirava.
No início dos anos 2000, o jornalista Mário Magalhães iniciou um estudo detalhado e aprofundado sobre a vida de Marighella. Esse estudo deu origem a um livro de 843 páginas, editado pela Companhia das Letras e lançado em 2012. Mário foi responsável por compilar histórias que contam quem foi o homem e quais os pensamentos e ações que o transformaram em ícone. O livro, que está na oitava edição, é o resultado de 256 entrevistas, somadas a documentos de 32 arquivos públicos e privados de cinco países.
O biógrafo reconhece a complexidade de Marighella ao responder o que mais admira em sua trajetória: “Ele teve uma vida trepidante; não há, ao meu olhar, uma característica que se destaque mais. Como eu costumo repetir, quase como um mantra: é legítimo amar ou odiar Carlos Marighella, mas é impossível permanecer indiferente à sua trajetória. A imensa maioria dos brasileiros não conhece a história de Marighella. Conhecer a própria história é um direito humano, direito dos povos. Ele viveu intensamente a política, a cultura, o amor, as artes, a amizade. A contracapa do livro destaca uma frase dita em 9 de maio de 1964 pelo seu maior perseguidor no Rio, o delegado Cecil Borer: ‘Cuidado, que o Marighella é valente’. Era mesmo”.
Para Magalhães, que nos concedeu entrevista por e-mail, “um dos maiores talentos de Marighella era a atividade que a tradição comunista denomina ‘agitprop’, ou agitação e propaganda. Marighella era obcecado com a eficiência da mensagem política. Eu conto no livro como Marighella bolou uma engenhoca para distribuir panfletos, um instrumento que a imprensa chamou de ‘foguetão extremista’”.
O biógrafo acrescenta: “O deputado Marighella surpreendia levando para as sessões pães de baixa qualidade, exibindo-os ao plenário, enquanto discursava denunciando a baixa qualidade de produtos vendidos por algumas padarias. Quando tentaram proibir que os anais da Casa registrassem a palavra “reacionário”, pronunciada por ele, causou espanto ao aparecer carregando muitos dicionários para mostrar como o adjetivo não ofendia o idioma”.
Preto vive
Foi a partir da biografia escrita por Magalhães que Wagner Moura escreveu o roteiro do filme intitulado Marighella, produzido pela Paris Filmes, que deve ser lançado nos próximos meses no Brasil. Em entrevista ao Brasil de Fato no início deste ano, Moura falou sobre o filme como uma disputa de narrativa: “Eu sou baiano. Suponho que o nome de Marighella seja igual no Brasil inteiro, mas, em Salvador, a gente cresceu tendo ele como referência de resistência”, acrescentou.
O biógrafo, perguntado sobre o fato do filme ainda não ter sido estreado no Brasil, declarou: “É evidente que a demora para a estreia do filme dirigido pelo Wagner está relacionada com o obscurantismo que avança no Brasil. É tempo do que o governo chama de ‘filtro’ na cultura. Para quem rejeita eufemismos, trata-se de ‘censura’, e não ‘filtro’”.
Marighella foi muitos. “Mil faces”, como diz a música do Racionais MC’s. Um quebra-cabeça que, há tempos, o Brasil se dedica a remontar.
Meio século após a morte, o Preto insiste em estar vivo.
FICHA TÉCNICA
Reportagem: Mariana Lemos e Marcos Hermanson | Artes: Fernando Bertolo | Edição: Daniel Giovanaz | Fotos: Arquivo Pessoal/A imagem e o gesto – Fotobiografia de Carlos Marighella | Coordenação de Jornalismo: Vivian Fernandes, Camila Maciel e Daniel Giovanaz | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima