Diário de Bordo | Guantánamo

Conhecida mundialmente pela base naval dos EUA, província abriga a encantadora e tradicional cidade de Baracoa

“Candela”, “Oye Como Va”, “Carretero” e “Guantanamera”. Se você for turista, é praticamente impossível voltar de Cuba sem ter ouvido - todas - essas músicas ao longo da estadia. E, se a viagem for em 2017, é grande a chance de ouvir “Despacito” também.

Mas, ouvir Guantanamera em Guantánamo foi especialmente tocante para mim. A música, de 1928, é uma das mais famosas do país e foi criada para homenagear uma mulher nascida na província. Nos anos 1950, à composição, que já era muito popular na ilha, foram incorporados versos escritos pelo libertador do país, José Martí:

Con los pobres de la tierra
Quiero yo mi suerte echar
Con los pobres de la tierra
Quiero yo mi suerte echar
El arroyo de la sierra
Me complace mas que el mar

Guantanamera
Guajira Guantanamera
Guantanamera
Guajira Guantanamera

 

Quando comecei a trabalhar como repórter, no Portal Vermelho, um dos temas mais recorrentes era o apoio à demanda cubana pela devolução da Baía de Guantánamo, em posse dos Estados Unidos desde 1901. Por isso, minha comoção por estar naquele território, tema de tantas matérias.

A demanda pela devolução de Guantánamo é uma pequena síntese da bravura cubana. Com a retomada das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, no final de 2015, a ilha socialista deixou explícito que a condição para que as relações sejam normalizadas é que o bloqueio econômico e financeiro imposto ao país seja levantado e que o território ocupado seja devolvido.

A presença de estadunidenses é, além de tudo, uma ameaça concreta à soberania da ilha. O historiador Luiz Figueiras Pérez conta que, durante a luta armada comandada por Fidel Castro, os aviões do ditador Fulgêncio Batista eram abastecidos na base naval e que, o principal impacto para os guantanameros, antes da revolução, era sentido no fato de os soldados terem transformado a região - literalmente - em um bordel.

Em 1492, o almirante Cristóvão Colombo fincou a Cruz de la Parra no território hoje chamado Baracoa. A relíquia hoje está exposta na Igreja Nossa Senhora da Assunção de Baracoa, a principal da cidade, e é a única, das 29 fincadas por ele em todo o continente, que persiste, intacta. Pelo feito, é considerada milagrosa e, por isso, é chamada Santa Cruz de la Parra.

Cidade Principal de Cuba, Cidade Paisagem, Cidade das Águas e Cidade das Montanhas: são muitos os adjetivos utilizados pelos cubanos para definir Baracoa, que é a primeira cidade cubana, fundada em 1511. A localidade, encantadora, permaneceu isolada por muito tempo, já que o acesso só era possível pelo mar. Apenas na década de 1960 foi construído o Viaduto de La Farola, que liga a região ao restante da província. Os cerca de 30 quilômetros de extensão da estrada são marcados pela serra de altos picos, que contrastam com os abismos que se abrem do lado oposto da pista.

Em outubro de 2016, o Furacão Matthew, com ventos de 220 quilômetros por hora e intensa chuva, atingiu a cidade. Os danos causados foram grandes, totalizando US$ 63 milhões. As casas foram destelhadas, o hotel La Rusa, histórico, foi consideravelmente destruído, a vegetação foi devastada, postes caíram, cortando o fornecimento de energia e estradas ficaram bloqueadas.

No entanto, nenhuma pessoa morreu. O forte apelo solidário que tem o povo cubano resultou em uma ampla mobilização de brigadas com técnicos e voluntários de todo o país para ajudar na reconstrução da cidade. Seis meses após a intempérie, nenhum turista pode supor que ali passou um furacão que arrasou a cidade.

Não tem como não pensar em Cuba, uma sociedade que reivindica para si a construção de um processo social igualitário e não questionar se, de fato, é possível criar uma sociedade justa, com igualdade de oportunidades para todos. A pergunta não tem resposta simples.

Muito cubanos almejam sim as benesses do capitalismo. Os jovens estão nas praças, com seus smartphones conectados à internet, conversando em vídeo com pessoas que, talvez, morem do outro lado do Atlântico, na Europa, ou menos nos Estados Unidos. E muitos, muitos cubanos, ainda reclamam do fato de “não poderem viajar para o exterior”.

Para uma análise destas, é impossível qualquer isenção. Ou seja, é preciso levar em conta o meu lugar de fala. Por ser brasileira, mulher, negra e de periferia, sei, por experiência própria - ou seja, ninguém me contou - que a desigualdade é a condição essencial para a manutenção e desenvolvimento do capitalismo.

“Da ponte pra cá é outra história”, diz a icônica frase do grupo de rap brasileiro Racionais Mc’s. E o que vemos na América Latina é uma situação predatória, em que a miséria da maior parte da população é o pilar de sustentação do privilégio da extrema minoria da sociedade.

Vivemos no continente de maior desigualdade em todo o mundo. “Da ponte pra cá é outra história”. Os privilégios estão aí para serem contemplados a olho nu: no país, a média salarial é de cerca de R$ 1.000. Em São Paulo, é de R$ 2.400.

A iniciativa de valer-se dos recursos e poder do Estado para garantir maior equidade e distribuição de riquezas no país, teve seu balão de ensaio com os governos do PT, com Lula e Dilma. O processo, no entanto, foi estancado com o discurso falacioso de Estado inchado e necessidade de austeridade. O que temos visto até o momento, com o governo golpista de Michel Temer, é um novo aumento das desigualdades, desemprego e recessão econômica.

Por outro lado, Cuba, que não tem uma economia pujante, em grande medida pelo criminoso bloqueio econômico e financeiro imposto pelos Estados Unidos, minimiza em termos absolutos a miséria, controla a desigualdade - que sim, existe - e, já com a atualização do regime revolucionário, incentiva a inventividade e o empreendedorismo. Tanto que o que mais se vê em Havana e não apenas, mas em todo o país, são cubanos abrindo seus pequenos restaurantes, alugando suas casas para turistas, dirigindo táxis, vendendo artesanatos…

Realmente me comove que muitos cubanos, que assim gostariam, não poderão visitar o Brasil como eu pude visitar Cuba. Eu fui até lá como jornalista, convidada pelo Ministério do Turismo e tive meus gastos todos pagos pelo governo cubano. Mas, quais brasileiros podem almejar passar uma temporada na ilha? Essa resposta, sim, é simples: muito poucos.

Eu sempre respondia aos taxistas que me contestavam com esses argumentos que meus pais nunca saíram do Brasil e que a primeira viagem de avião que fizeram, para o nordeste, foi ano passado, com passagem paga em muitas prestações.

O capitalismo é isso: você pode. Mas não fará porque não terá recursos suficientes e então, ao contrário do meu amigo do bicitáxi, não poderá culpar o governo por isso. A culpa será somente sua, porque se o capitalismo realmente te oferece possibilidades igualitárias - como apregoam os defensores do Estado mínimo - você não conquistou porque foi incapaz. Quando, na verdade, você não conquistou porque há toda uma estrutura social, política e financeira estruturada rigidamente para manter - como em castas - uma baixa mobilidade social e a garantia dos privilégios de uma minoria absoluta.

Texto e fotos: Vanessa Martina Silva | Edição: Luiz Albuquerque | Arte: José Bruno Lima | Ilustrações: Karina Ramos