Reportagem: Rute Pina
Até o início deste ano, a cantora baiana Luedji Luna, de 30 anos, estava convicta de que seu nome significava “amizade”. Mas um colega angolano lhe contou recentemente que a palavra também pode significar “rio” em tchokwe, um dos principais idiomas do país africano.
O nome de batismo ela ganhou do pai, historiador e militante do movimento negro em Salvador (BA), cidade onde ela nasceu e cresceu. Já a história do sobrenome artístico, Luna, a cantora conta vacilando entre a vergonha e o riso. A ideia surgiu quando um amigo, durante o ensino médio, apresentou o livro "Introdução à Bruxaria". O título pareceu fantasioso, mas despertou curiosidade da adolescente de 14 anos.
"Quando eu li aquele livro, que falava sobre essas mulheres que tinham autonomia sobre os corpos e sobre a própria vida, dominavam o segredo da natureza, mulheres que dançavam, que tinham voz e poder de mando... Eu achei tudo muito diferente daquilo que eu vivia. Pensei: 'Se essas mulheres existem, eu quero ser uma delas'", confessou a cantora, aos risos.
Filha de professores e ativistas, Adelaide Santa Rita e Orlando Santa Rita, Luedji Luna começa a despontar no cenário da música independente. Este ano, a cantora e compositora recebeu três indicações ao Prêmio Caymmi de Música, que fomenta novos talentos no estado da Bahia. O reconhecimento ocorreu antes mesmo da gravação do seu primeiro álbum, viabilizado com uma campanha de financiamento coletivo, e após a cantora também ser contemplada no Prêmio Afro. A previsão é que o disco seja lançado em outubro deste ano.
Trajetória
Em seu apartamento em Osasco, região metropolitana de São Paulo (SP), Luedji começa a contar sua história com a ponderação de que seu percurso difere da trajetória comum das mulheres negras no Brasil: tem uma família estruturada, estudou em bons colégios particulares e teve acesso à educação, à cultura e ao lazer — o que não a protegeu de, também, sofrer com o racismo.
A infância da menina negra em escola particular foi marcada pelo “racismo travestido de bullying”. “Eu era uma das poucas negras no lugar onde morava, no meu bairro, no colégio em que eu frequentava. E essa é uma história de muita solidão”, disse.
Foi este universo solitário que a aproximou da escrita, lugar de refúgio e de expressão. A música também era muito presente em sua vida: tem memória de sonos embalados ao som de música clássica quando criança; do pai estudando ao som do reggae de Peter Tosh e de Edson Gomes; e de chorar quando uma professora tocou em uma aula a canção Coração de Estudante, de Milton Nascimento.
Mas a referência definitiva foi a batucada do Raciocínio Lento, um grupo de final de semana formado por amigos de seu pai — "homens negros, trabalhadores, que se reuniam aos finais de semana para tomar uma e fazer música". Eles tocavam Gilberto Gil, músicas do cancioneiro popular baiano, MPB e também algumas canções autorais.
“A música, não sei te explicar o porquê, sempre me tocou bastante. Ela sempre esteve nesse lugar de mexer com emoções que eu não entendia, de catarse. Como processo criativo, só aconteceu depois”, lembra.
Arma de guerra
Luedji compôs a primeira melodia aos 17 anos. O canto estava presente, mas de maneira descompromissada. Na véspera do vestibular, sentiu o desejo de cantar profissionalmente, mas optou por fazer faculdade de Direito.
“Como sou filha de militantes, acadêmicos, eu fui preparada para seguir esse caminho: ser cientista, disputar espaços de poder. Eu era uma arma de guerra, de uma geração de filhos da militância que preparou seus filhos para tomar espaços de poder e romper com as barreiras do racismo. Não estava dentro deste projeto dos meus pais — que também era um projeto político — de ser artista, de fazer música.”
Mas, já no último ano de faculdade, decidiu pagar aulas de canto na Escola Baiana de Canto Popular com o salário do estágio. O instituto proporcionou seus primeiros shows: o primeiro foi no palco do Teatro Solar Boa Vista, espaço tradicional do circuito soteropolitano.
Ouça a trajetória de Luedji Luna
“A primeira vez que cantei publicamente eu fiquei muito tensa e cantei com olhos fechados. Estar ali em cima do palco foi um ato de muita coragem. Eu estava negando uma história que não era só minha, um projeto que era dos meus pais e de todo um movimento anterior”, recorda.
Corpo no mundo
Hoje, Luedji já se afirma como cantora e compositora. Por isso, há dois anos decidiu sair de Salvador para construir a carreira em São Paulo (SP).
Morando toda a vida na cidade mais negra fora da África, ela percebeu uma cidade “extremamente embranquecida” quando chegou à capital paulista. Mas, logo, a cantora notou também os contrastes da metrópole: no terminal rodoviário da Barra Funda, região onde a baiana morava na época, um movimento imigratório muito forte, principalmente de haitianos e angolanos, chamou a atenção.
“Eu via muitos corpos negros e eu me via nessas pessoas que, não eram brasileiras, mas eu me sentia mais identificada com aqueles corpos. Comecei a fazer essa reflexão sobre o corpo negro no mundo e sobre o meu próprio corpo nessa cidade”. A reflexão deu origem à canção Um Corpo no Mundo, que é também título de seu primeiro álbum e que rendeu visibilidade na Internet.
De forma natural e genuína, a diáspora negra, o período da escravidão e o racismo sistemático são temas recorrentes das suas canções. A cantora se sente responsável por contar estas histórias. “No início, quando comecei a compor, a minha música era muito centrada em mim mesma, nos meus sentimentos, nas minhas ausências e na minha solidão. Mas com o tempo, a maturidade traz essa mudança de olhar para o mundo e para outro, também muito em função desse deslocamento, de sair de Salvador.”
Racismo
Luedji tem controle total da carreira. Mas ela tem também uma equipe que auxilia com produção, fotografia e gestão de redes sociais — equipe composta, sobretudo, de mulheres pretas. É outro modo que a cantora encontrou para exercer sua militância.
“O racismo é tão perversos que, até mesmo no meu caso, que tive uma história de privilégios, os esforços para você alcançar aquilo que você quer acabam tornando o caminho mais difícil. Os efeitos do racismo na psique e na autoestima geram uma lógica de auto-sabotagem, de insegurança, de autoestima que paralisa e que retardou um pouco esse meu processo de conquista de coisas. Por isso, eu faço música na perspectiva da cura.”
Para Luedji, todas as histórias de mulheres negras são histórias de superação. “Não tem ser humano mais forte que uma mulher negra”, diz a cantora, pensando em sua avó, que criou oito filhos; e em sua mãe que saiu do Alto das Pombas, bairro periférico de Salvador, e ascendeu socialmente.
“Se minha mãe superou a pobreza, eu superei o discurso da impossibilidade. Eu estou mostrando para minha mãe, avó e tataravó que nós somos possíveis: nós, mulheres negras.”
Edição: Simone Freire