Mães da Praça de Maio na Argentina: 42 anos de maternidade política

Duas das fundadoras do movimento criado durante a ditadura falam sobre suas trajetórias e a atualidade de suas lutas

Foto: Eitan Abramovich/AFP

Por Luiza Mançano

De São Paulo (SP) | 11 de maio de 2019

“Um abraço muito forte e solidário para essas mães, companheiras de luta. Não estão sós, de nenhuma maneira". Essa é uma das primeiras frases de Taty Almeida, integrante da organização Mães da Praça de Maio Linha Fundadora. A mensagem dela se dirige a centenas de mulheres brasileiras que, neste domingo (12), passarão por mais um dia das mães sem seus filhos, vítimas da violência do Estado.

A solidariedade expressa nas palavras de Taty é um dos princípios que orientam a atuação das mães da Praça de Maio que, há 42 anos, lutam pela memória e justiça de seus filhos desaparecidos durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).

Com rostos e símbolos conhecidos e reconhecidos internacionalmente, atualmente não é possível pensar nas lutas populares da Argentina sem sua presença. Taty Almeida e Hebe de Bonafini, hoje divididas em duas organizações – Mães da Praça de Maio Linha Fundadora e Associação Mães da Praça de Maio, respectivamente – estão sempre presentes nas manifestações, rodeadas de pessoas que acompanham suas trajetórias com respeito e admiração.

As duas, que têm 88 e 90 anos, ainda têm muito a dizer e o fazem com vozes firmes, que se exasperam ao falar sobre o desaparecimento de seus filhos – e de tantas outras pessoas – ou sobre a política argentina atual.

Entre 1977 e 2019, pode-se dizer que as Mães da Praça de Maio aprenderam a modular suas vozes, passando do silêncio ditatorial aos burburinhos iniciais, conversas paralelas entre mães que buscam informações sobre seus filhos; até a vozes que se alçam contra as injustiças e desigualdades, as do passado e as do presente, que se encontram e se atualizam com frequência.

Falando às vezes mais, às vezes menos, sobre suas vidas pessoais e familiares e também com divergências políticas maiores e menores, todas elas reconhecem que a perda de suas filhas e filhos desaparecidos é a origem de um processo político duradouro – sempre atravessado pela dor.

O Brasil de Fato conversou com estas duas mulheres, que recuperam momentos importantes de suas trajetórias de mães políticas [nunca mãe e políticas como contradição] e analisam também o atual momento da luta popular na Argentina.

Hebe de Bonafini, ao falar sobre o presente, fala também sobre o Brasil. Em relação aos presidentes Bolsonaro e Macri, é assertiva:

“Não são presidentes, são ditadores. E, como tal, é preciso denunciá-los e não pensar que podem ser melhores. São homens iguais aos ditadores, têm mais raiva dos pobres e são fantoches do governo dos EUA. Bolsonaro é um ditador, um assassino, um torturador e assim deve ser tratado”.

ORIGENS

No começo de junho de 1980, vinte mães da Praça de Maio saíram de La Plata, na província de Buenos Aires, em um micro-ônibus no qual viajaram até Porto Alegre, em um trajeto de mais de trinta horas com um único objetivo: denunciar ao Papa João Paulo II o desaparecimento de seus filhos e os crimes cometidos durante a ditadura em curso em seu país.

As vinte mães carregavam um cartaz onde se lia "Aparição com vida dos presos desaparecidos. Mães da Praça de Maio", que logo descobririam ser grande demais para parar em pé. Entre batalhas com arcebispos, policiais, apoio de jornalistas e uma visita ao estádio Garotinho, conseguiram, finalmente, uma reunião com o líder mundial. E, de quebra, repercussão internacional.

Quem nos conta esta história é Hebe de Bonafini que, aos noventa anos, recorda com precisão datas e nomes de pessoas que se solidarizaram ou “atrapalharam suas vidas” nos dias que passaram na capital do Rio Grande do Sul. A história que Bonafini decide contar, apesar de ser menos conhecida, reúne elementos da valentia com a qual passaram a desafiar o Estado argentino desde o dia 30 de abril de 1977, quando se reuniram na Praça de Maio, em frente a sede do governo, pela primeira vez.

Mães da Praça de Maio durante uma das Marchas da Resistência. Foto: Arquivo/AFP

Foi também durante uma viagem que nasceu o símbolo com o qual passariam a ser reconhecidas, o lenço branco na cabeça. Em outubro de 1977, as mães decidiram participar da peregrinação à Basílica de Nossa Senhora de Luján – padroeira da Argentina –, convocada anualmente pela juventude católica e uma das poucas manifestações permitidas pelo regime ditatorial.

“A criação do lenço foi fortuita para nos reconhecermos em uma marcha, uma história que as pessoas já sabem. Fomos à Lujan e não nos conhecíamos, não conhecíamos nossos sobrenomes e, para nos encontrar, precisamos encontrar um motivo. E uma teve a ideia de usar uma fralda de pano para cobrir a cabeça, era branco e dava pra ser visto à noite”, nos conta Hebe de Bonafini.

A fralda de pano, que se tornou lenço, trazia bordado a ponto cruz o nome do familiar(es) desaparecido(s), uma forma também de aproximar aqueles que poderiam ter informações sobre o paradeiro de seus filhos.

Taty Almeida segura seu lenço branco com o nome de seu filho desaparecido, Alejandro M. Almeida. Foto: Eitan Abramovich/AFP

A ideia de que a luta iniciada no final da década de 70 teria um prazo final, que culminaria com a aparição dos desaparecidos, é recorrente na fala das mães.

“Não começamos a luta acreditando que íamos passar quarenta anos, começamos a luta para encontrá-los. E ficamos quase três anos para perceber que os meninos não iam voltar. Durante três anos, algumas mães muito mais [tempo], tínhamos uma expectativa enorme de encontrá-los. Algumas mães que demoraram dez anos para desfazer o quarto de seus filhos ou filhas”, comenta Hebe.

Nas origens das Mães da Praça de Maio estão a perda e a dor, irreparáveis. No entanto, longe do ressentimento (como aquilo que paralisa), a lembrança da luta iniciada pelos seus filhos representa para estas mulheres o impulso de um nascimento, o despertar para a vida política.

“Me arrancaram aquilo que uma mulher tem de mais precioso, que é um filho. O segundo dos meus meninos, Alejandro Martín Almeida, tinha 20 anos quando foi desaparecido. E, realmente, a vida mudou completamente. Eu sempre digo: me sinto parida pelo meu filho. Alejandro me pariu. Pariu Taty Almeida. É o que dizem todas as mães, mas eu digo também, pessoalmente. Foi assim que mudaram a vida de todas”, relata Taty Almeida.

Este contrassenso inicial – nascer através de seus filhos – e sua consequente subversão do que era a maternidade, transformando-a em ato político, também tornou as mães perigosas aos olhos do Estado. Ainda em seu primeiro ano de atuação, três delas, Azucena Villaflor, uma de suas fundadoras, Esther Careaga e María Bianco foram desaparecidas pelos agentes da ditadura e assassinadas em um “voo da morte” no Rio de La Plata.

Mães da Praça de Maio levam flores ao monumento de homenagem à Azucena Villaflor, uma das fundadoras do movimento, sequestrada e assassinada pela ditadura argentina. Foto: Daniel Garcia/AFP

Posteriormente, as Mães da Praça de Maio ganharam uma nova alcunha, tão comum às mulheres que desafiam seus papéis tradicionais, foram consideradas “loucas” pelos militares e seus apoiadores.

“Estávamos loucas de dor, loucas pela perda de nossos filhos, eles tinham razão”, afirmou Juana de Pargament, mãe da Praça de Maio que faleceu em 2016 aos 101 anos sem saber o paradeiro de seu filho, Alberto Pargament, desaparecido em 1976.

UMA LUTA QUE PERDURA

“O desaparecimento dos nossos filhos mudou nossa vida completamente. Eu sou professora, aposentada há muitos anos, e nunca imaginei que, depois de tantos anos, seguiria ensinando com um lenço branco na cabeça. Ensinando pela vida. Nunca imaginei”, declara Taty Almeida durante a entrevista.

A luta das Mães da Praça de Maio, iniciada naquele 77, nunca mais acabou. Com o final da ditadura, em 1983, elas enfrentariam ainda diversas batalhas, a pressão pela punição dos torturadores, a abertura dos arquivos da ditadura, tudo aquilo que representasse o direito à verdade e à justiça.

A continuidade da luta, nos relatos das mães entrevistadas, está atrelada à perda que desencadeou a organização enquanto movimento popular.

“Diante da mesma dor que vivemos no passado e seguimos vivendo, porque essa ferida nunca se fecha. Muitos dizem: ‘o tempo cura as feridas’. Mentira. Esta ferida pela perda dos nossos filhos vai estar sempre aberta, mas sem ânimo de vingança e sim de justiça”, expressa Taty.

Para Hebe de Bonafini, a luta política é o legado de seus filhos, Jorge Omar, desaparecido em fevereiro de 1977, e Raúl Alfredo, sequestrado dez meses depois que seu irmão, em dezembro do mesmo ano. Na época, Bonafini era uma dona de casa platense, de origem popular, que tinha cursado apenas o ensino fundamental.

“Esta luta de algumas de nós, sobretudo as das classes mais baixas – porque houve luta de classes entre as mães –, a classe mais alta não pensa da mesma forma, mas nós pensamos como nossos filhos, pensamos na luta deles, no que quiseram, que tem uma atualidade enorme. Ao longo do tempo, sempre teve atualidade”, conta.

Mães da Praça de Maio durante uma de suas tradicionais rondas realizadas todas as quinta-feiras pela tarde. Na faixa que carregam, lê-se: “A falta de trabalho é um crime”. Foto: Arquivo | Asociación Madres de la Plaza de Mayo

Durante a redemocratização iniciada em 1983, as mães seguiam exigindo justiça. O primeiro presidente eleito, Raúl Alfonsín, em suas primeiras medidas, cancelou a lei de autoanistia que os militares tinham proclamado, instaurou o julgamento das juntas militares pelas violações aos direitos humanos cometidas no período ditatorial e criou a Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (CONADEP).

No entanto, Alfonsín, em meados de seu governo, cedeu à pressão dos militares e aprovou duas leis, a Lei do Ponto Final e a Lei da Obediência Devida, que anulavam os julgamentos dos militares e a punição por crimes cometidos durante a ditadura.

“Estas leis nos mataram, então os presidentes foram mudando, e não conseguíamos justiça, por causa dessas leis, que não podiam julgar os genocidas e seus cúmplices do golpe. Mas não cruzamos os braços. Continuamos exigindo ‘justiça, justiça, justiça’”, recorda Taty.

Um dos períodos intensos de luta e trabalho para as Mães da Praça de Maio corresponde aos doze anos de governo de Néstor (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015). A chegada do novo governo, em 2003, é recordada como um período de intensas mudanças para as madres.

“Nestor Kirchner foi o primeiro presidente que nos escutou, todos nos receberam, mas ele foi o primeiro que nos escutou e o primeiro presidente que tomou os direitos humanos como política de Estado, não de um governo, mas de Estado. Um Estado presente. E também foram anuladas essas leis de impunidade e seguimos julgando, a torto e a direito, os genocidas e seus cúmplices”, declara a integrante das Mães da Praça de Maio Linha Fundadora.

Após a anulação das leis que haviam protegido os militares por três décadas, outras medidas do governo pareciam oficializar os clamores das mães, que seguiam confrontando as políticas de esquecimento, sem nunca cruzar os braços.

Em seu segundo ano de governo, Néstor Kirchner determinou a retirada dos quadros dos ditadores que ainda decoravam o Colégio Militar, pediu perdão às avós, mães e filhos que lutam pela memória e justiça em nome do Estado argentino “pela vergonha de ter se calado durante 20 anos por tantas atrocidades”.

O discurso de Néstor dirigido especialmente às mães, avós e filhos de desaparecidos, aconteceu na Escola de Mecânica da Armada (ESMA), um dos principais centros de tortura na ditadura militar.

Nesse mesmo ano, o presidente sancionou uma lei que determinava que o lugar deixasse de ser a casa dos Oficiais Superiores da Armada para passar a ser Espaço de Memória para a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos.

Hebe de Bonafini recorda este período como um momento de muito trabalho, que nunca cessou.

“Quando vieram Néstor e Cristina, seguiu tudo que pedíamos, os julgamentos, as penas, as prisões, a reivindicação dos nossos filhos, então tínhamos a necessidade de acompanhá-los em tudo que diziam e sempre tinha algo pra dizer, então a luta se transforma, muda”, declara.

Entre 2006 e 2018, 3010 militares foram acusados por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura. Destes, 862 foram condenados, 530 faleceram e 715 ainda estão sendo julgados, segundo dados da Procuradoria do país.

Mães da Praça de Maio protestam em frente à ESMA, em Buenos Aires, um dos principais centros de detenção e tortura durante a ditadura militar. Foto: Arquivo

A luta pela memória e justiça avançaram no país durante os anos do kirchnerismo. Assim, Néstor e Cristina se tornaram como “filhos” para algumas, mas não para todas, cabe demarcar. As divergências políticas que haviam levado à divisão das Mães em duas linhas diferentes ainda em 1986 se confirmaram no período.

No entanto, todas elas seguiram perseguindo as lutas que começaram a travar nas décadas anteriores.

“Sempre [atuando] pelos mesmos motivos, a desigualdade, a fome, o desemprego, a privação da liberdade, a tortura, a falta de acordo, os traidores que geralmente são muitos e os que acreditam que a política é um caminho para conseguir um cargo. Então, tudo isso tem que ser pensado com trabalho, falando, escrevendo, discutindo”, declara firmemente Hebe de Bonafini.

“ATÉ QUE CHEGOU MACRI”

A eleição de Maurício Macri, em 2015, também marca um novo momento na organização das Mães da Praça de Maio como frente de resistência.

“Foram doze anos que ninguém nos desrespeitou, não nos desrespeitaram, nem desrespeitaram a memória de nossos filhos. Doze anos e não se violaram os direitos humanos, até que chegou Macri”, conclui Taty Almeida ao refletir sobre os momentos que lhe pareceram mais decisivos em sua atuação.

Bonafini também sobe o tom ao falar do atual governo e, durante a conversa, comenta uma de suas principais preocupações, o aumento da pobreza no país.

“É muito doloroso e terrível o que está acontecendo. Hoje as favelas estão totalmente abandonadas com crianças que não comem, com crianças descalças, vem o inverno e é desesperador pensar que estarão todo o inverno molhados, sem comida, sem medicamentos, sem atendimento médico”, lamenta.

A preocupação da líder da Associação Mães da Praça de Maio expressa, uma vez mais, o compromisso que elas assumiram ainda no princípio de sua organização, a ideia de uma maternidade socializada para além da luta individual, “tornando-nos mães de todos”, como proferiu em um de seus discursos na Unesco no ano de 1999.

Atualmente, 12,9 milhões de argentinos estão em situação de miséria, isto é, uma em cada três pessoas é pobre. No caso das crianças, a pobreza é uma realidade para quase metade dos menores de 14 anos (46,7%). E uma em cada dez vive abaixo da linha da pobreza.

O dia das mães da Argentina em 2019 será dia 20 de outubro, durante a campanha eleitoral, quando as madres estarão lutando, segundo elas, “para voltar a ter um governo popular”.

Para a data comemorativa do Brasil, neste 12 de maio, as militantes históricas consideram que as mães brasileiras que perderam seus filhos enfrentam também muitas batalhas. Consultadas sobre o que gostariam de dizer às suas vizinhas que compartilham as mesmas dores, são enfáticas: “que não abandonem a luta, que não percam as esperanças”; “não cruzem os braços, continuem exigindo justiça, sigam em frente, têm todo o nosso apoio”.

Hebe de Bonafini, fundadora da Associação Mães da Praça de Maio. Foto: Eitan Abramovich/AFP

RESSONÂNCIAS: O FUTURO

No entanto, em meio a políticas de retrocesso, é no presente que as madres conquistaram um novo símbolo de reconhecimento. Ao longo do último ano, a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal foi impulsionada por milhares de feministas, sobretudo jovens, que realizaram imensas jornadas e manifestações pelos seus direitos reprodutivos. A insígnia da campanha que percorreu o mundo é um lenço verde com um lenço branco desenhado no centro, em homenagem às Mães da Praça de Maio.

Uma homenagem revelada também em uma de suas palavras de ordem, em diversos cartazes que carregam: “as mães nos ensinaram a lutar”. Taty Almeida vê este reconhecimento como uma continuidade – e atualização – das batalhas concebidas por elas nos anos duros da ditadura.

“Nós, que já somos mais velhas, temos muita tranquilidade justamente pela juventude maravilhosa que temos, que estamos passando o bastão de pouquinho a pouquinho”, afirma com entusiasmo.

Devido à dimensão que a campanha adquiriu em 2018, Hebe de Bonafini reconhece a homenagem como algo importante, mas demonstra um receio sobre uma possível descaracterização: “que o lenço seja multiplicado, está bem, mas que seja comercializado nas esquinas, me dói um pouco”, adverte.

Nesta bonita aliança entre gerações, as Mães da Praça de Maio, e também as Avós da Praça de Maio – que lutam para encontrar os netos roubados de suas filhas e filhos desaparecidos – e as jovens feministas constroem seus laços para criar também novos modelos de maternidade.

Na última quinta-feira, 09 de maio de 2019, as mães da Praça de Maio marcharam pela 2143ª vez. Caminhando ainda – como os policiais as obrigavam em 1977 –, incansáveis.

Na palavras de Taty Almeida, “porque ainda, e apesar das bengalas e das cadeiras de roda, as loucas, como fomos chamadas, continuamos em pé”.

Reportagem e apresentação: Luiza Mançano | Edição: Aline Carrijo | Coordenação: Vivian Fernandes

Nora Cortiñas, co-fundadora das Mães da Praça de Maio, carrega no pulso um lenço verde, símbolo da luta pelo aborto legal. Foto: AFP

Foto: Juan Mabromata/AFP