Há exatos dois séculos nascia o espectro que, até hoje, ronda o mundo como a maior influência para todos que lutam contra as injustiças do sistema capitalista, seja por meio da adoção de uma nova percepção da realidade, seja pela iniciativa da prática transformadora. Filósofo, economista, jornalista e revolucionário comunista, Karl Marx continua tão atual em 2018 quanto nos séculos 19 e 20. É o que defendem os estudiosos de sua teoria entrevistados pelo Brasil de Fato para esta reportagem especial.
Ao contrário de sua teoria política, porém, as histórias da vida pessoal e da militância de Marx não foram amplamente divulgadas ao longo desses 200 anos. À medida que, nos últimos tempos, mais biografias começam a ser publicadas no Brasil, a imagem do velho senhor barbudo, intelectual e autor de obras densas, começa a ser melhor conhecida.
Esse movimento de desmitificação e humanização do pensador revolucionário torna-se ainda mais necessário diante da atual conjuntura de crise política e econômica, no país e no mundo, a fim de que suas ideias e reflexões sejam cada vez mais lembradas, estudadas e praticadas.
Militante
Nascido no dia 5 de maio de 1818, em Trier, então Renânia Prussiana, Marx era filho de um advogado e de uma herdeira de família rica, tendo crescido com conforto financeiro em uma família que poderia ser considerada, à época, de classe média. Um homem do Iluminismo, movimento que no século anterior havia quebrado paradigmas ideológicos em defesa, principalmente, da razão e da liberdade, Marx sempre demonstrou o gosto pelos estudos, ingressando nas Universidades de Bonn e, posteriormente, de Berlim, onde estudou Direito e Filosofia.
Durante a década de 1840, Marx participou de grupos de discussão hegelianos de esquerda, e inaugurou a crítica ao idealismo de Hegel e aos socialistas utópicos, linha de pensamento que posteriormente foi base para a elaboração de seu materialismo dialético. Ao trabalhar como jornalista, Marx teve acesso às experiências, conflitos e realidades que também influenciaram suas reflexões sobre a luta de classes.
Para a economista Olívia Carolino, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e educadora do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (Cepis), o entendimento de Marx como militante intensamente envolvido nas lutas de seu tempo, em oposição à imagem criada por críticos conservadores de que o filósofo não praticava suas ideias fora da academia, são fundamentais para entender o marxismo.
"O método de Marx, sua grande munição, foi construído para fundamentar sua militância e isso é o que nos aproxima da teoria marxista hoje. Quando olhamos para a militância de Marx vemos uma postura crítica e científica diante da luta, da vida, que é considerar tudo provisório. Uma postura militante de considerar a possibilidade de uma revolução. Ele teve uma vida engajada em produzir sínteses que são uma teoria da revolução", afirmou.
Já de acordo com Kelli Mafort, dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Marx continua sendo a “prova”, para o Movimento, de que é possível conciliar a contribuição teórica e a militância.
“É muito importante, agora, no bicentenário de Marx, a gente retomar seu legado tanto para a economia quanto para a militância política, mas também do ponto de vista da sua dedicação em combinar o estudo teórico com muito afinco com a questão dessa militância. Hoje, essas dimensões estão mais apartadas, como se quem estudasse não tivesse questão de militar, e vice-versa”, opinou.
O historiador Lincoln Secco, professor da Universidade de São Paulo (USP), destaca que a importância do pensamento marxista é, justamente, a concepção de uma possibilidade real de mudança social.
"Na época, os socialistas concebiam doutrinas das mais variadas possíveis, e belas, mas que dependiam do convencimento e boa vontade da sociedade para que fossem executadas. Marx, ao contrário, concebeu o comunismo não como uma teoria apenas, mas como um movimento prático que deveria ser praticado na realidade, ou seja, uma teoria praticada constantemente", disse.
Amor e Capital
A importância das relações pessoais de Marx para o desenvolvimento de sua obra política é um tema que vem ganhando mais notoriedade nos últimos anos. Para Olívia Carolino, o casamento de Marx e Jenny Von Westphalen – com quem teve sete filhos - pode ser caracterizado como "um dos aspectos mais radicais de sua vida".
"Jenny abandona sua família aristocrata para viver ao lado de um revolucionário. Eles tiveram uma vida que foi uma saga. Acho interessante ressaltar que a humanidade de Marx, que refletia na sua vida familiar, é a transformação de um ser que participa de uma organização coletiva. Eram dois companheiros que também eram companheiros na luta política. Esse é o verdadeiro processo de humanização de um militante comunista: quando você participa de um projeto maior que a sua vida, acaba sendo uma questão de coerência ter um ambiente familiar que, por mais que tenha carência de aspectos materiais, tenha uma abundância de afeto", destacou a economista.
O papel de Jenny como revisora e tradutora das obras de Marx, bem como sua importância como interlocutora e pensadora revolucionária, foi abafado por décadas. Em 2011, com a publicação do livro Amor e Capital - A Saga Familiar de Karl Marx e a História de uma Revolução, da autora Mary Gabriel, além do lançamento, em 2017, do filme O Jovem Marx, do diretor haitiano Raoul Peck, a importância de Jenny e a relação do casal voltou ao debate sobre as ideias marxistas.
Essas obras possibilitam o questionamento das narrativas que tentam apontar uma suposta negligência com a família por parte de Marx, que teria reproduzido as facetas do patriarcado de sua época. Tais boatos espalhados para deslegitimar sua obra são baseados, principalmente, no fato do filósofo ter tido um filho em uma relação extraconjugal e de sua família ter vivido boa parte da vida em situação de miséria.
Para Lincoln Secco, Marx foi sim um homem de seu tempo, mas também teve pensamentos revolucionários que influenciaram, posteriormente, as lutas feministas.
"Embora pobre, Marx viveu como um intelectual, não como um trabalhador manual. Ele rompeu com vários elementos que constituíam a vida burguesa no século 19, mas também tinha seus preconceitos. É essencial destacar o papel de Jenny na construção de sua teoria e na manutenção de sua vida prática, o que permitiu que ele fosse militante político, e ela, muitas vezes, não. Porém, Marx nos deixou a teoria que feministas marxistas usam como método para criticar o predomínio masculino nas sociedades", ponderou.
Na opinião de Carolino, tais informações sobre a vida de Marx auxiliam, justamente, na desmistificação de sua imagem como um teórico inacessível. Para ela, "também é humanizador ver o sujeito com uma biografia com contradições. Mas eu gosto de me referir a um texto do Marx, o Ensaio sobre o Suicídio, em que ele enumera casos de suicídios de mulheres vítimas do patriarcado, tecendo uma crítica sobre o suicídio no capitalismo", disse.
Segundo Kelli Mafort, pesquisadora do feminismo marxista, a contribuição das teorias e métodos de Marx para o movimento gira em torno, principalmente, da percepção de classe. “Nosso feminismo mobiliza a dimensão de classe juntamente com a de gênero. Então, é baseado no fato de que a divisão sexual do trabalho foi historicamente operada junto ao elemento de exploração de classe. Isso é muito importante, e nos define de forma muito diferente das feministas liberais”, explicou.
Trabalhadores de todo o Mundo, Uni-vos!
Além do relacionamento com Jenny, a amizade com o filósofo Friedrich Engels, que se tornou popularmente conhecido como "patrocinador" dos estudos de Marx, também representa outro laço pessoal essencial para o desenvolvimento do marxismo. Filho de um rico industrial, Engels apresentou a Marx diversos clássicos da literatura política, e ele próprio foi autor de obras de importância para o pensamento marxista, além de coautor de obras como A Ideologia Alemã, O Capital, e a mais conhecida, O Manifesto Comunista.
Escrito em meio a uma onda de levantes urbanos e operários nos principais países europeus, a chamada Primavera dos Povos, O Manifesto Comunista foi uma encomenda da então chamada Liga dos Justos, um grupo de revolucionários alemães que vivia em Paris e foi, posteriormente, transformada na Liga dos Comunistas, primeira organização internacional marxista.
Apesar de ter sido encomendado para representar apenas o manifesto de um partido, o documento se tornou um dos tratados políticos de maior influência no mundo, principalmente por reivindicar reformas sociais e políticas necessárias, como a diminuição da jornada diária de trabalho e o voto universal, em resposta ao voto censitário em vigência na França e em outros países europeus, sobretudo os de regime monárquico, à época.
"O Manifesto Comunista dá voz ao primeiro momento em que o proletariado entra na história organizada enquanto classe. Ele teve a oportunidade de dar voz a um movimento histórico", pontuou a economista Olivia Carolino.
De acordo com o historiador Lincoln Secco, a obra foi resultado de discussões coletivas na Liga dos Justos e da análise de um texto de Engels chamado Catecismo Comunista. O texto permaneceu desconhecido por, pelo menos, duas décadas, até voltar a ganhar importância por conta do apoio entusiasmado de Marx à Comuna de Paris, em 1871. Hoje, o livro é um dos mais publicados no mundo, em quase todas as línguas.
"É um clássico do pensamento, um documento tão importante quanto a Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa. Sou um colecionador de edições de O Manifesto Comunista, e o que me surpreende é que, a partir da crise econômica mundial de 2008, além de O Capital, que voltou a ser mais editado na Alemanha e nos EUA, o Manifesto foi muito mais editado que qualquer outra obra de Marx e, na verdade, mais ainda que muitas outras obras de pensadores do passado", contou o historiador.
Dividido em quatro capítulos, o Manifesto apresenta reivindicações que até os dias de hoje são parte estrutural dos programas de partidos e organizações de esquerda em todo o mundo, como a abolição dos direitos sobre a herança, a estatização total de empresas de transporte e comunicação, bem como dos meios de produção como um todo, e uma tributação progressiva.
"Desde 2008, o capitalismo se viu de tal forma abalado e foi demonstrada de tal forma a injustiça flagrante desse sistema, que jovens do mundo inteiro se movimentaram. Eu diria que, em um contexto como este, caracterizado também pelo centenário da Revolução Russa, a teoria de Marx é mais do que atual. Marx está vivo, e as próximas revoluções estão à vista. Talvez não para amanhã, mas será inevitável uma contestação generalizada diante de um sistema que se demonstra sempre extremamente injusto e cruel", concluiu Secco.
Dois séculos depois, ainda é imperiosa a união mundial dos trabalhadores conclamada por Marx.
Texto: Julia Dolce e Diego Sartorato | Produção e roteiro: Camila Salmazio | Edição: Nina Fideles e Thalles Gomes | Infográfico: Fernando Bertolo | Ilustrações: Lucas Milagres | Animação: Wilcker Moraes | Edição de vídeo: Juliano Vieira e Marcelo Cruz | Coordenação de jornalismo: Nina Fideles e Thalles Gomes | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima