Reportagem: Elen Carvalho e Jamile Araújo
Vilma Reis, socióloga e ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia, recebeu a reportagem na sede da Defensoria na segunda (24), dia antes da data mais esperada desse mês de julho em Salvador. A agenda intensa de trabalho e atividades com outras mulheres negras não foi impeditivo para que ela conversasse conosco sobre a sua trajetória.
A entrevista não começou, no entanto, sem que ela quisesse saber das duas jovens comunicadoras negras que estavam diante dela. E lembrou das mulheres que estão produzindo no ramo da comunicação, mas que ainda não são reconhecidas.
Vilma, que está há 30 anos na luta em defesa das mulheres negras, dos direitos LGBTs, da juventude negra e da população quilombola, trouxe uma análise de conjuntura detalhada e precisa das condições de vida da maioria da população desse país e apontou desafios. A precisão das suas reflexões demonstra a lida antiga com os problemas do povo.
Deixemos então que ela se apresente!
Militância
Comecei no Movimento Estudantil com 15 anos de idade. Estávamos saindo da ditadura militar, um momento extremamente difícil no Brasil. E foi por meio do movimento em defesa da escola pública, algo tão libertador para mim, que cresci no interior da Bahia, em Nazaré das Farinhas.
Lá era onde ouvia da luta dos meus tios e do meu pai, que eram todos sindicalistas da rede ferroviária. E cresci com uma avó muito forte, uma mulher que nasceu dia 6 de janeiro de 1911, por isso que eu sou “Reis”. É dali que minha avó dá sobrenome a toda família. E cresci com essa avó que me dizia: “Eu estou limpando a casa dos brancos, eu estou catando pimenta de ganho, mas você tem obrigação de ser doutora”.
Compreendi que essa frase de minha avó não é sobre você ser doutora pra você. Não é você pegar o título e achar que você ficou melhor que alguém da sua comunidade. Os nossos títulos de graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, ou seja lá do que for, devem ser ferramentas para a gente seguir no projeto de libertação do nosso povo. Porque enquanto tiver uma mulher negra sendo humilhada no serviço de saúde, enquanto um homem negro continuar sendo humilhado numa blitz da polícia, todas e todos nós estaremos na linha de tiro.
Vida acadêmica
Digo sempre que a nossa presença no ambiente acadêmico deve ser de enfrentamento a injustiça cognitiva ao epistemicídio e enfrentamento a este bloqueio cognitivo que a narrativa da "casa grande" historicamente tem sobre nós. Então a nossa posição desde sempre precisa ser de descolonização.
A nossa posição deve ser sempre de nos colocarmos não como a classe dominada, ao contrário, a nossa presença na universidade deve ser exatamente a da fissura. E a universidade nunca mais será aquele “projetinho” que constituiu a USP de 1935, que chamou os franceses para organizar uma universidade.
A universidade que a gente propõe é um projeto acadêmico de ruptura. E essa ruptura passa por aquilo que a gente chama de enfrentamento a “Biblioteca Colonial”. Não é possível constituir uma universidade libertadora, no contexto das Américas, sem levar em conta quem somos nós, o que nós pensamos.
Trazendo a referência de Lélia Gonzalez, que ao fazer seu texto clássico “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, nos lembra que nossa tarefa, em muitos momentos, é subverter a ordem, partir para a desobediência a uma academia que tenta enquadrar todo mundo.
Defensoria
Recentemente o Defensor Público Geral, na sabatina para a nossa eleição da ouvidoria na defensoria pública, nos perguntou: “Por que você se candidatou para ser ouvidora geral na Defensoria Pública novamente?”. Respondi primeiro que não estava ali sozinha, pois não acredito em projeto de eu, em projeto individual. Estamos aqui a partir de uma postura política, coletiva, pensada e arquitetada.
Segundo, estamos aqui porque cansamos de perder no sistema de justiça e a gente veio para criar uma fissura. O debate que a gente colocou sobre a mesa é irreversível. Não é possível ter democracia na justiça sem as ouvidorias externas, portanto, sem uma posição politizada da população.
A presença da Defensoria nas cidades do interior cheias de coronel, onde a “casa grande” está viva, ainda “instalando” os mandatários e a dinastias políticas, quebra essa lógica. Nós batalhamos para ampliar a defensoria e esse é o papel decisivo da ouvidoria.
Resistência
A primeira coisa é não desistir das lutas. A outra coisa é pensarmos muito em com quem, onde e quando fazemos alianças. Porque o projeto que defendemos tem poucos aliados. Não queremos pessoas substituindo as vozes desses sujeitos, batalhamos para que essas pessoas se fortaleçam, se levantem e se coloquem.
Lembrar e levar em conta, quando formos fazer nossos materiais, que muita gente foi expulsa da escola por conta da transfobia, da misoginia e do racismo. O Brasil segue com essa ferida em carne viva que é o racismo, a misoginia e a lgbtfobia. O desprezo às pessoas que usam fio conta de orixá, o desprezo com a nossa forma de falar aqui no nordeste, sem levar em conta nossa diversidade. A gente precisa apostar no trabalho de base, entender que, às vezes, tem um beco que não passa uma geladeira, mas passa nossa esperança todo dia de vencer. Investir no trabalho de base, investir na libertação do pensamento, fazer com que cada vez mais o nosso povo tenha acesso a outros conteúdos e desligue essa televisão que é “daltônica” num país com diversidade racial, multicor. Ou a gente peita esse projeto genocida que está na comunicação, que está no mercado de trabalho, que está na ação covarde das polícias, ou a gente não tem como seguir.
Bahia
No projeto de Nina Rodrigues, de Ruy Barbosa e de Monteiro Lobato, estávamos condenados a acabar. A gente não acabou. E a gente se constitui, depois de Nigéria, a maior população negra no planeta.
Estou falando do ponto de vista da população negra porque entendo que estou no estado de maioria negra. Estou na Bahia e nós somos 79% desse estado. Estou na capital, Salvador, com 83% de negros e negras.
E, ao falar desse ponto de vista, estou incluindo as maiorias. E aqui, em muitos momentos, temos vivido situações semelhantes à África do Sul dos anos 50, que é a colonização em carne viva destruindo nossas vidas.
Precisamos reagir a uma sociedade que produz coisas como o “Brasil Urgente” e outros programas de carnificina e poça de sangue, no meio-dia explodindo das telas dentro do nosso prato, que é uma forma de criminalizar a nossa população, e dizer “pode matar mesmo que eles não são humanos”.
A gente reivindica a nossa humanidade com um projeto que não é só para nós, é para toda a sociedade brasileira.
Edição: Juliana Gonçalves