Em 1960, o Oscar podia ter vindo para o Brasil. Naquele ano, o filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, foi o vencedor de melhor filme estrangeiro, mas representou a França. Embora o diretor seja francês, os atores do filme, o cenário e, principalmente, a história são completamente brasileiros.
O longa é uma adaptação de uma peça de teatro escrita por Vinicius de Moraes, chamada Orfeu da Conceição. O mito grego de Orfeu e Eurípedes trazido para a realidade carioca.
Embora tenha sido o próprio poeta brasileiro quem apresentou a proposta para Camus, o pacote não veio como encomenda.
Nestes dias pré-Oscar, no qual Brasil tem chances de consagrar a primeira estatueta com Ainda Estou Aqui, o programa Bem Viver apresenta uma série de entrevistas lembrando a história de Orfeu Negro e as polêmicas envolvidas no reconhecimento do filme enquanto obra brasileira.
Foi a viúva de Vinicius de Moraes, Gilda Mattoso que confirmou o “desgosto” do poeta brasileiro.
“Ah, a França adora glamourizar a miséria e coisas do gênero”, diz Mattoso, citando uma frase que disse ter ouvido muito ser dita pelo marido.
Segundo ela, o poeta chegou a falar para Camus sua opinião sobre o filme.
“Ele falou com um pouco de sutileza para não dizer na lata que achou o filme uma porcaria, mas ele falou, sim. Ele manifestou que não gostou e inclusive em Cannes ele saiu no meio da projeção, foi uma coisa chata”.
Mattoso é assessora de imprensa há décadas, atuando ao lado de grandes nomes como Gilberto Gil. A carreira dela começou junto com o relacionamento com Vinicius, na década de 1970.
Confira a entrevista na íntegra
Como você começou seu trabalho de assessora de imprensa?
Olha, tudo começou antes até antes de eu me casar com Vinícius. Eu morei na Europa muitos anos porque eu estudava línguas, e lá eu comecei a trabalhar com produção de shows de artistas brasileiros na Itália e na França, sobretudo.
E nessa função que eu conheci Vinicius. Nossa história começou ali. Ele ficou inclusive morando um tempo em Paris comigo e depois a gente voltou para o Brasil e assumimos nossa relação aqui.
Enquanto estive casada com ele eu não trabalhava, porque o Vinicius já dava tanto trabalho e não sobrava tempo para fazer mais nada. Tinha que cuidar dele, cuidar da agenda dele, das roupas, do escritório, que era uma zona, uma loucura.
Depois que ele morreu, a gravadora Ariola tinha acabado de se instalar no Brasil, e o primeiro a assinar com eles foi Toquinho, e logo depois o Chico [Buarque].
Então eles falaram com o presidente da gravadora para me empregarem. Eu conhecia todos os artistas, tinha um bom trânsito com eles.
Mas eu não tinha nem mesa no começo. Logo depois, o assessor de imprensa da gravadora foi embora e eles me botaram para fazer assessoria, eu não sabia nem do que se tratava, mas aí comecei na marra e gostei.
Fui ficando como estou até hoje.
E quando foi a primeira vez que você encontrou o Vinicius?
Foi em Niterói, em 1972. Eu sou de Niterói e um dia teve um show do Vinicius, Toquinho e Marília Medalha, que é também de Niterói.
Eu era super fã do Vinícius, então eu fui levando meus livros todos pra ele assinar, pra autografar. E lá eu ouvi um zum zum zum de que eles iam jantar na casa da Marília, que eu sabia bem onde era porque me dava com o irmão dela, Chico Medalha.
Aí eu falei: “Chico, pelo amor de Deus, deixa eu ir nesse jantar. Eu não como, nem nada, mas só quero ficar lá, tietando”.
Aí eu fui com uma amiga minha de infância, fomos para a casa da Marília. Nós estávamos de carro, eu e a minha amiga.
Quando acabou o jantar, eles começaram a se movimentar para voltar para o Rio. Isso é pré-ponte Rio-Niterói, então eu e minha amiga nos dispusemos a levar Vinícius e a mulher dele na época na estação das barcas, em Niterói.
Fomos levando eles, deixamos eles lá e foi isso, um contato de fã.
Só depois que eu fui morar na Europa e todos os lugares onde eu morava, por uma razão ou por outra, sempre a gente se encontrava.
Aí foi nascendo uma amizade, a gente foi se conhecendo melhor, ele me ligava de vez em quando pra bater papo.
E quando que, de fato, vocês começaram a ficar juntos?
Em 1978, em Paris.
No ano anterior, em 1877, ele foi à Europa com Toquinho e Maria Creuza. Eu fiquei bem amiga dela e um dia ela disse: “olha, o poeta tá arrastando a asa pra você”.
Eu falei: “Que isso, Maria Creuza? Imagina, Vinicius é assim com todo mundo”.
Ele estava casado na época, com uma argentina, mas a família dela não aprovava muito, então ela ficava muito entre Buenos Aires e Rio. Ele ficava muito só no Rio.
Isso foi o que as pessoas me contaram, e ele depois me confirmou: “eu vou voltar para o Brasil para encerrar a minha história com a Marta, e aí você vem depois, e assumimos”.
O filme Orfeu Negro é anterior ao relacionamento de vocês. Mas ele chegou a comentar a respeito?
Olha, falamos muito nisso, porque quando eu estava com ele, o Cacá Diegues, que nos deixou agora, começou a pensar em refazer o filme.
Ele frequentava muito a nossa casa, porque ele queria escrever o roteiro com Vinicius.
Vinicius ficou todo animado, porque ele não gostava do filme francês. Inclusive, nesse musical que eu estou trabalhando, Tom Jobim Musical, tem ele e Tom falando disso.
“Ah, a França adora glamourizar a miséria e coisas do gênero”, dizia ele.
Ele tinha muita vontade que um diretor mais sensível e mais entendedor da situação das favelas fizesse o filme.
Vinicius chegou a falar o que pensou do filme para Camus?
Ele falou com um pouco de sutileza para não dizer na lata que achou o filme uma porcaria, mas ele falou, sim, ele manifestou que não gostou e inclusive em Cannes ele saiu no meio da projeção, foi uma coisa chata.
Ele falava que estava glamourizando a pobreza, que aquele filme era folclórico.
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