Gestão hídrica, resíduos sólidos, habitação, adaptação às mudanças climáticas, carnaval, saneamento, Plano Diretor, parques. De uma forma ou de outra, são áreas em que a prefeitura de São Paulo está abrindo mão de seu papel como indutora de políticas públicas para conceder ou privatizar o máximo de ativos possíveis. Com isso, a tendência é que o interesse público seja substituído pela função primordial do setor privado: o lucro.
É o que expõe Nabil Bokduki (PT-SP), urbanista, professor da Universidade de São Paulo e que assumiu em 2025 seu terceiro mandato como vereador da capital paulista. “A prefeitura hoje, cada vez menos, tem capacidade técnica e de interlocução, porque tem feito uma política de desmontar os seus quadros técnicos, suas estruturas administrativas, e terceirizar ou conceder muitos dos equipamentos municipais”, diz Bonduki, que foi o relator dos projetos de lei que deram origem aos planos diretores de 2002 e de 2014 em São Paulo.
“A gente viu aqui nesse último ano a pavimentação de muitas ruas que eram de paralelepípedos, porque a prefeitura contrata uma empresa e a empresa quer fazer obra. Quanto mais metros quadrados de recape fizer, melhor. Se tem que fazer isso em cima do paralelepípedo, faz”, explica.
A decisão sobre os paralelepípedos é só uma entre várias que não são mais tomadas pela administração Nunes, mas que deveriam ser objeto de planejamento para, por exemplo, equacionar o problema histórico das enchentes na cidade. “Obviamente que o paralelepípedo não vai resolver o problema da enchente, mas é um elemento”, afirma.
Em 2025, o verão veio acompanhado com grandes enchentes em diversas regiões. As inundações no Jardim Pantanal e no Beco do Batman foram apenas dois exemplos. Para Bonduki, a gestão Nunes vai no sentido oposto a de um urbanismo sustentável. “Urbanismo sustentável não é não fazer piscinões, reservatórios. É ter um conjunto de políticas que atuam nesse sentido.” Uma das possibilidades, ainda na gestão hídrica, é a construção de parques e de pequenos reservatórios em cada lote, ações que diminuem a vazão de água no momento das tempestades, que, por conta das mudanças climáticas, devem ser cada vez mais comuns.
Nabil lembra que, apesar de necessárias, medidas de mitigação dos impactos do aquecimento global não são suficientes. “Quanto mais graves ficam as mudanças climáticas, mais as soluções que vão ser insuficientes e nós vamos chegar num colapso”, afirma. Por isso, ele defende que as medidas de adaptação andem em conjunto com aquelas que buscam diminuir a emissão de gases de efeito estufa. “Temos que fazer a transição da mobilidade, como ela é hoje, de automóveis, para o transporte coletivo eletrificado, que não emite CO2. No campo, precisamos diminuir o desmatamento”.
Nabil falou ainda da revisão do Pano Diretor de São Paulo, realizada em 2023, de Carnaval, meio ambiente, saneamento e outros temas. Confira alguns trechos e assista à entrevista completa no player abaixo.
Brasil de Fato: Nabil, estamos em mais um verão em São Paulo com enchentes generalizadas. Mais uma vez o Jardim Pantanal, na zona leste, ficou debaixo d’água”, não foi a primeira vez, não vai ser a última, e é só um exemplo de uma região periférica que sempre sofre com as enchentes nos últimos anos. Por que a cidade ainda não conseguiu equacionar a questão das enchentes?
Nabil Bonduki: Em primeiro lugar, São Paulo é uma cidade que foi construída sem considerar o meio físico. Claro que temos hoje as mudanças climáticas, que agravam o problema, mas as enchentes sempre aconteceram na cidade de São Paulo. Não é uma novidade haver grandes enchentes, inclusive piores que essa. Eu lembro, por exemplo, em 1967, meu pai tinha uma loja na região da [rua] 25 de março. Ela ficou vários dias com na água, assim nessa altura.
É um problema recorrente porque a cidade foi crescendo sem respeitar os fundos de vale. Foi crescendo também impermeabilizando o solo, se criou uma massa urbanizada impermeável muito grande e a água, quando cai, vai procurando os lugares mais baixos e vai inundando. Eu diria que isso é uma questão estrutural da cidade, que não foi construída levando em conta o meio físico e principalmente a questão hídrica.
É também uma cidade que tem uma dimensão monstruosa, quer dizer, a região metropolitana. Nós temos que pensar isso sempre que o assunto hídrico é regional, não existem limites municipais. Nós temos 22 milhões de pessoas morando em uma área muito concentrada e isso existe há muito tempo.
Não posso dizer para você que nada foi feito, porque foram feitas muitas coisas. Muitos lugares, como a [rua] 25 de março, não inunda mais, porque foram feitas intervenções ali. Para pegar um outro exemplo, o Pacaembu. Eu vou citar o Pacaembu porque ali, na gestão Luiza Erundina, foi bolada uma solução que era o piscinão, que existe hoje ali debaixo da Praça Charles Miller. Ele tem evitado inundação ali no córrego do Pacaembu.
As iniciativas têm sido feitas, mas elas não dão conta de problemas que são recorrentes, às vezes por ineficiência do poder público, às vezes porque as obras são malfeitas, porque também existem outros fatores que deveriam ter sido considerados, que são muito concretos, como os resíduos sólidos. Muitas vezes as galerias estão entupidas por conta dos resíduos sólidos, às vezes as bocas de lobo estão entupidas. Ou o lixo está na rua, vem a grande chuva, e mesmo que ela não esteja entupida, se entopem na hora da chuva, e isso vai agravando os problemas.
Muitas vezes esses problemas vão causar mortes, como causaram agora, vão causar prejuízos enormes. O Beco do Batman, por exemplo, é uma região gravíssima, em que isso é recorrente, histórico.
E o [Jardim] Pantanal é o leito do rio, o leito natural do Rio. Nós temos um trecho do Tietê que foi canalizado e retificado e foram construídas as marginais. Já foi um erro, porque ali deveria ser construído um parque ao longo do Tietê, mesmo que fosse retificado o rio, que era cheio de meandros. Então aquela área toda era Municipal. Ali deveria ser feito um parque, como foi feito o parque do Tietê, mais para a frente. Agora, a regra do Pantanal, Jardim Romano, que 15 anos atrás teve outra situação semelhante a essa, são áreas que estão abaixo do nível que deveriam estar.
E aí vamos ver um outro programa correlato. Eu falei dos resíduos, que nós não temos uma política adequada de resíduo na cidade, mas também não tem uma política de habitação. Não tivemos ao longo do tempo uma política de habitação com continuidade, que desse conta de enfrentar o problema. Claro que tivemos programas importantes, eu posso falar por experiência própria, eu coordenei a área de habitação popular no governo Luiza Erundina, e a gente produziu a habitação, mas obviamente esses programas tiveram descontinuidade. Nós temos problemas – depois podemos falar um pouco sobre o Plano Diretor e o planejamento da cidade, coisas que estão acontecendo hoje, que houve incentivo para a habitação de interesse social, mas não foi atendida a população de baixa renda.
Ali no Pantanal, nós temos um problema recorrente que precisa ser enfrentado, basicamente, com duas perspectivas. Uma perspectiva é produzir habitação para quem está em situação mais grave, e a outra é criar mecanismos de drenagem que permitam que aquele lugar seja habitável.
E como está sendo a gestão de Ricardo Nunes em relação às enchentes? as decisões, as obras que estão sendo feitas…? Elas estão indo em que caminho?
Ela [a gestão] não está indo no caminho de um urbanismo sustentável. Urbanismo sustentável não é não fazer piscinões, reservatórios. É ter um conjunto de políticas que atuam nesse sentido. Vou dar um exemplo de uma proposta que está em lei, inclusive, que deveria ser estimulada pela Prefeitura, que são as chamadas piscininhas, ou reservatórios que deveriam ser feitos nos lotes. Dessa maneira você reduz a quantidade de água que imediatamente vai para o sistema de drenagem. Fica reservada no lote, pode inclusive ser feito o reúso dessa água. Fiz uma reunião com o pessoal do Beco do Batman, falei sobre isso, e falaram “ah, mas aí cada um tem que fazer o seu?”, eu falei “bom, claro que cada um poderia fazer o seu”, mas tem o investimento. A prefeitura poderia criar um programa de financiamento com subsídio, ou até mesmo com total subsídio para as pessoas fazerem pequenos – porque isso tem um custo, claro. Mas ao invés de fazer uma grande obra que é um piscinão, você pode fazer talvez um piscinão menor e fazer vários pequenos reservatórios. Isso é mais sustentável.
Outra política é a pavimentação das ruas. A prefeitura, com esse enorme programa de recape, acabou asfaltando ruas de paralelepípedo, que são mais permeáveis do que o asfalto. Então nós não temos um pavimento permeável.
A Prefeitura apoiou mudanças no zoneamento que estimulam a construção de subsolos, por exemplo, aumentando o número de garagens, e quanto mais se constroem subsolos, também você cria problemas com as águas subterrâneas, modifica o curso das águas.
Agora, há um programa de macrodrenagem. Alguma coisa foi feita, mas coisas que tinham de ter sido feitas não foram. Vou dar um exemplo. Temos uma enchente que acontece ali na região da Pompéia, Perdizes, na rua Turiassú, na Avenida Sumaré. Na revisão da Operação Urbana da Água Branca, que eu participei em 2013, na Câmara, foram previstas algumas obras que ficaram carimbadas. Nós tínhamos recurso lá em 2013, estamos falando de 12 anos atrás. Tinha recurso da operação, eles foram carimbados para duas principais obras. Uma era construção do conjunto habitacional para famílias que foram removidas na favela do Sapo e da favela da Água Branca – que até hoje estão em bolsa aluguel ou estão perdidas por aí – e [recurso] para fazer a drenagem dos córregos Sumaré e Água Preta. Essa obra começou a ser feita em 2015, se não me engano, em 2016 com Haddad, e ficou uma segunda etapa para fazer em seguida. Essa segunda etapa não foi feita pela administração [do ex-prefeito João] Doria e até hoje não foi feita. Assim como as habitações também não foram feitas. Tem o terreno, tem o projeto, tem recursos. Inclusive, há uma fiscalização do Ministério Público para [o recurso] não ser usado para outras finalidades, está no banco e não foram feitas nenhuma dessas duas obras.
Aí veio o metrô e fez a estação Sesc Pompeia, que fica exatamente nesse mesmo trecho. Isso já alterou profundamente situação no local, de modo que agora está se fazendo um novo projeto. Então veja como um problema há 12 anos, que poderia ter sido enfrentado, e não foi. Então nós temos várias situações.
Para não falar também que é só a responsabilidade da prefeitura, há o problema do córrego Verde, do rio Verde ali na Vila Madalena. Houve uma proposta de fazer um piscinão. Houve uma ação de moradores que não queriam o piscinão, isso ficou na Justiça por 12 anos e não foi feito nada. Na verdade, o que a prefeitura deveria ter feito era ter pactuado uma solução com os moradores. Porque quem está embaixo sofrendo no Beco do Batman, naquela região baixa da Vila Madalena, sofre com problema da enchente. E quem está na área mais em cima, não quer que ali seja feito um piscinão. É a clara situação em que deveria haver uma pactuação entre os interessados com a mediação da prefeitura para encontrar uma solução para o problema, que é um problema que gerou a morte de um artista que estava na sua casa, que foi levado pela correnteza.
Agora o prefeito está falando em remover toda a população do [Jardim] Pantanal, uma situação que pode até eventualmente ser a solução, mas isso primeiro precisa ser debatido com a população, precisa ser encontrada uma solução habitacional para aquelas famílias, para aí, dentro dessa perspectiva, poder ter uma solução, que pode ser essa, que podem também ser outras soluções, como um reservatório, como um dique, que já foi feito naquela região do Jardim Romano, que dessa vez não inundou.
Então nós temos várias possibilidades de enfrentar o problema, o que precisa ser pactuado com participação. E aí a prefeitura não faz esse trabalho participativo, de pactuação, e aí os problemas vão se agravando.
É interessante você voltar para a questão da moradia, porque junta com a questão da enchente. Enche e a primeira solução é “vamos tirar todo mundo daqui”, o que tem interesse para fazer uma grande obra de construção civil, contratar para fazer prédios que muitas vezes não estão de acordo com as necessidades. Vão construir prédios que não vão ser permeáveis, que não vão ter área verde, que vão piorar a situação das pessoas, vão quebrar a comunidade. Como é que se trabalha isso na ponta para fazer com que a solução seja funcional? É a prefeitura mesmo que tem que fazer isso?
Com certeza, a prefeitura tem um papel central nisso. Agora veja, a prefeitura hoje, cada vez menos tem capacidade técnica e capacidade de interlocução. Porque a prefeitura tem feito uma política de desmontar os seus quadros técnicos, suas estruturas administrativas, e terceirizar ou conceder muitos dos equipamentos municipais. A subprefeitura deveria ser o grande espaço de pactuação no nível local, e ela deveria ter capacidade de discutir temas como resíduos sólidos, drenagem urbana, pavimentação, só que isso é feito de maneira totalmente centralizada.
A gente viu aqui nesse último ano a pavimentação de muitas ruas que eram de paralelepípedos, porque a prefeitura contrata uma empresa e a empresa quer fazer obra, quanto mais metros quadrados de recape fizer melhor. Tem que fazer isso em cima do paralelepípedo, faz. Obviamente que o paralelepípedo não vai resolver o problema da enchente, mas é um elemento. É mais permeável, ele também reduz a velocidade como a água corre, e isso é importante, porque quando a velocidade está muito grande, ela tende a levar resíduos, levar tudo. pessoas, inclusive, carros, como aconteceu na Vila Madalena.
Então, a prefeitura está descapacitada para fazer isso. Desde essa lógica do Estado mínimo, a terceirização… Como muitos dessas questões são recorrentes, nós tínhamos funcionários que conheciam o histórico, que estavam lá há muito tempo, e eles deveriam ter sido substituídos por novos funcionários – as pessoas se aposentam – que vão recebendo esse histórico. Na hora em que você terceiriza, você joga isso para fora da prefeitura e as empresas não têm funcionários estáveis, não têm gente que conhece o assunto, então vai se perdendo o histórico.
De repente parece que cada vez você tem que falar de novo do mesmo tema. Provavelmente as pessoas que começaram a discutir o parque linear do Rio Verde, que foi discutido em 2012. Talvez os funcionários da subprefeitura não estão mais lá.
Nós temos uma sequência de prefeitura da mesma linha. Começa com Doria, Bruno Covas, e agora Nunes. Claro que teve uma mudança. Agora, por exemplo, [há] uma presença muito maior da extrema direita do governo, enquanto o Bruno Covas era da tradição mais centrista do PSDB, então tivemos uma piora. Mas como mentalidade de gestão, não mudou tanto e é uma mentalidade de terceirização. A gente poderia falar de cemitérios, do Pacaembu… Essa terceirização, essas concessões acabam repassando a gestão de cidade para o setor privado, que tem fundamentalmente o objetivo de lucro, não de cumprir o papel do poder público, que é pensar na cidade como um todo, em todos. É triste a gente ver as coisas que estão acontecendo na cidade hoje, e muitas vezes concedidas por 30, 35 anos.
Eu queria trazer dois exemplos de tragédias que têm muito a ver com as mudanças climáticas, que são a tragédia de São Sebastião, que aconteceu há dois anos, em que 64 pessoas morreram e mais de mil ficaram desabrigadas, e no ano passado a emergência climática que aconteceu no Rio Grande do Sul, que devastou regiões inteiras. São eventos que vão acontecer cada vez mais, a ciência diz que os eventos extremos são se repetir. Isso traz um debate sobre como a política urbana brasileira, não está preparada para esses acontecimentos. O que se poderia fazer em termos nacionais, em termos de políticas, para a preparação para esses eventos e evitar novas tragédias?
Em primeiro lugar, antes de falar o que vamos fazer para nos preparar, nós precisamos nos conscientizar e contribuir para evitar que a emergência climática vá se agravando cada vez mais. Nós alcançamos já 1,5°C de elevação da temperatura da Terra, que os cientistas têm definido esse ponto como um ponto de não retorno. Nós precisamos ter clareza de que se a gente não fizer nada, não vai ser de 1,5°C, 2°C, vai ser de 4°C. 5°C.
Nós temos que reduzir a utilização de combustíveis fósseis na mobilidade, por exemplo. Temos que fazer a transição da mobilidade, como ela é hoje, de automóveis, para o transporte coletivo eletrificado, que não emite CO2. Isso nas cidades, no campo, [é preciso] reduzir o desmatamento na Amazônia. Ter outra forma de tratar os resíduos sólidos, com reciclagem, com redução de geração, principalmente. É um amplo conjunto de ações para mitigar as mudanças climáticas, porque não adianta a gente a gente correr. “Vamos adaptar a cidade para as mudanças climáticas”, esse é o tema que você me perguntou. Só que quanto mais graves ficam as mudanças climáticas, mais as soluções que vão ser insuficientes e nós vamos chegar num colapso, porque não vamos ter a mesma velocidade.
Então vamos trabalhar nas duas perspectivas. É mitigar, reduzir a emissão de gases de efeito estufa, reduzir os desmatamentos. Isso é uma questão planetária, uma questão do país, mas temos que dar contribuição. Infelizmente nós temos agora um negacionista nos Estados Unidos, que está estimulando a exploração de petróleo. Infelizmente é o país que mais emite no mundo per capita. Mas tudo bem, nós temos que dar a nossa contribuição. O Brasil, o governo Lula, estabeleceu metas ousadas, é um país que está buscando cumprir isso. Mas se a gente não fizer a nossa lição de casa em cada cidade brasileira, nós não vamos conseguir chegar lá.
Agora, a outra questão é que temos que adaptar as cidades. Em São Sebastião aquela foi uma chuva em função das mudanças climáticas. Eles sempre aconteceram. Nós tivemos uma tromba d ‘água em Caraglatatuba, em 1967, que foi semelhante a essa, morreram 200 pessoas, foi gravíssima nesse ponto de vista. O que vai acontecer agora é com mais frequência e com mais intensidade. E foi o que aconteceu em São Sebastião onde a gente viu praticamente descer [terra] em áreas que não tinham sido afetadas pela intervenção humana. Mas elas desceram e elas atingiram o quê? Principalmente ali na Vila do Sahy, atingiram famílias que estavam morando numa área sensível.
Precisamos, em primeiro lugar, ter uma política de remanejamento das famílias – e são geralmente famílias de baixa renda, não só, mas principalmente – das áreas que seriam as atingidas. Para isso eu preciso produzir habitação bem localizada. Isso vai bater na questão “as áreas bem localizadas são mais caras”. Então precisamos de uma política de uso do solo, de interferir no preço do solo. No litoral, para pegar o caso de São Sebastião, a gente tem milhares ou centenas de milhares de casas que são para o uso temporário, por conta do turismo. E o turismo eleva o valor dos aluguéis, eleva o valor da terra e das casas. Temos que ter uma política mais consistente nesses lugares de turismo para garantir a moradia da população de baixa renda. Temos que ter mecanismos de política urbana, por exemplo, a cota de solidariedade é uma coisa fundamental. O que é que a cota de solidariedade? Empreendimentos de mercado, de alta renda, ter obrigatoriamente que se produzir habitação de interesse social para quem vai trabalhar nesse lugar.
Porque o problema é esse, o turismo cresce, um turismo que é sazonal, e aí precisa trazer pessoas para morar. São Sebastião teve um crescimento da população muito grande em função do turismo nos últimos 40 anos. Era uma região em que pouquíssima gente morava. O crescimento do turismo fez muita gente migrar para a região. A questão da habitação é importante, mas não basta dizer assim “precisamos construir habitação”. Precisamos reservar terra para construir habitação, o que significa interferir no mercado imobiliário, interferir nos valores, e aí nós vamos entrar no choque da livre concorrência, vamos entrar no choque com o mercado.
Você relatou na Câmara dos Vereadores, os projetos de lei que deram origem aos planos diretores de 2002 e 2014. Com base nessa sua experiência, como é que você avalia as mudanças que aconteceram no Plano Diretor em 2023 aqui em São Paulo?
Sobre o Plano Diretor, vou falar de 2014, a [mudança] mais recente e mais grave. Ele tinha muitas propostas inovadoras, mas que exigia maior dedicação do poder público para fazer com que elas fossem implementadas. Havia muito estímulo à habitação de interesse social. Havia muito estímulo a que a gente pudesse produzir habitação para uma população de baixa, média renda, em áreas servidas de transporte coletivo.
O que aconteceu? Por pressão do mercado imobiliário, por, vamos dizer assim, omissão da prefeitura, se produziu a habitação de interesse social, mas ela não foi destinada à população que mais precisava. Por isso se criou uma distorção. Nós tivemos uma série de burlas de vários tipos, desde a produção de habitação muito maior do que a área que deveria ser feita, e principalmente a produção de habitação que se beneficiou dos estímulos que havia para a produção de habitação de interesse social. A prefeitura revogou um decreto que exigia a fiscalização disso e as incorporadoras fizeram a festa, produzindo habitação para quem não precisava. Também tivemos outras distorções, como por exemplo, muita produção de unidades pequenas, voltadas para investidores, para moradia temporária, como Airbnb etc.
O que precisava acontecer agora, no Plano Diretor, na revisão [de 2023] era corrigir os problemas. Ser mais rigoroso, por exemplo, em relação ao tamanho das unidades, ser mais rigoroso em relação à questão de redução da produção de garagens e estacionamentos, desestimular o uso do carro, ser mais rigoroso para controlar a produção de habitação de interesse social, e a revisão não fez isso, pelo contrário. A revisão deixou a boiada passar. Se aumentou a área das unidades habitacionais que são autorizadas a serem feitas, se permitiu fazer perímetros maiores, o que significa menos gente morando em áreas bem localizadas, quando a gente precisaria exatamente do contrário. Autorizaram ampliar essa área de adensamento, com impactos muito grandes em regiões que deveriam ser protegidas, e ainda foi muito frágil no controle da produção de habitação de interesse social.
O que se fez nessa revisão foi atender alguns interesses imobiliários e alguns interesses de vereadores. A coisa foi muito mal feita, foi um projeto de lei praticamente sem atuação do Executivo, atendendo interesses do mercado e de vereadores dispersos. Com isso não se fez a revisão que precisaria ter sido feita. Não que aquilo que foi feito em 2014 estivesse ótimo, mas ele precisava ter sido acompanhado e corrigido, e isso não foi feito. O que coloca um desafio para esse novo período, precisamos corrigir os problemas que estão colocados. Fazer uma leitura mais clara do território, estudar os territórios, para a gente poder corrigir os problemas e fazer com que a gente pudesse ter uma cidade que respondesse a várias questões, entre as quais dessa que a gente estava falando antes, a questão climática. A gente não deveria mais permitir, por exemplo, que áreas verdes, áreas permeáveis, fossem destruídas para fazer empreendimentos. Não tenho nada contra fazer empreendimentos imobiliários mais adensados. Isso talvez seja necessário, inclusive para conseguir proteger as áreas permeáveis. Vou dar alguns exemplos aqui, o Bosque dos Salesianos, que fica no Alto da Lapa. Você tinha uma área de cerca de 20 mil metros. Nós deveríamos ter uma área construída e uma área que era verde. O empreendimento deveria acontecer na área construída, você vai adensar na área já construída, e proteger a área verde.
Nós temos um caso lá em São Mateus, que é um problema complicado, que é de resíduos. Como não se fez uma política de resíduo, agora a prefeitura está na seguinte situação: precisa continuar pondo o resíduo em aterro e não tem mais espaço. Querem tirar uma quantidade enorme, mais de 10 mil árvores, para poder fazer a ampliação do aterro. A falta de iniciativas na hora em que as coisas precisam ser feitas e não são feitas, leva a problemas que se acumulam um em cima do outro: menos área verde, mais área impermeável, tudo isso vai agravar as questões de eventos extremos e vai no sentido contrário daquilo que nós precisaríamos fazer. Hoje eu estou convencido da proibição de derrubadas de maciços verdes importantes na cidade. É proibição. E vamos ver onde vai construir, porque tem áreas para construir. Não precisamos destruir o que já está lá, que é verde, que é permeável, senão a situação vai sempre se agravando.