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SUS será colocado à prova com demanda represada ao longo da pandemia

Somente em 2020, 27 milhões de procedimentos e 10 mil transplantes deixaram de ser realizados na rede pública de saúde

Um alerta que vem sendo feito por profissionais da área da saúde há meses recebeu contornos mais concretos nesta semana, com a divulgação de duas pesquisas sobre o número de atendimentos que deixaram de ser feitos no sistema de saúde brasileiro por causa da pandemia.

Na segunda-feira (13), o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou levantamento apontando queda de 27 milhões de procedimentos como exames e consultas. Os dados são referentes ao período entre março e dezembro de 2020. O declínio foi registrado na comparação com o mesmo período do ano anterior.

Dois dias depois, na quarta-feira (15), a Agência Brasil publicou dados repassados ao veículo pelo Ministério da Saúde, que indicavam queda expressiva nos transplantes realizados no Sistema Único de Saúde (SUS).

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"Essa consolidação converte em números algo que a gente tem percebido e sobre o que profissionais conversam desde o ano passado", afirma o médico de família e comunidade Aristóteles Cardona, a respeito da preocupação com o risco do interrupção de tratamentos que deveriam ser contínuos

Em conversa no podcast A Covid-19 na Semana – parceria entre o Brasil de Fato e a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares –  ele explica que a demanda de casos da covid-19 causou o redirecionamento de profissionais, recursos e estrutura da rede pública para o tratamento de pacientes atingidos pela pandemia, em detrimento de todas as outras demandas de saúde.

Os números

De acordo com o estudo do CFM, houve queda de 16,6 milhões de exames de diagnóstico, 8,8 milhões de procedimentos clínicos, 1,2 milhão de pequenas cirurgias e 210 mil transplantes. Somente entre março e abril do ano passado, os procedimentos caíram quase pela metade. 

O cenário é consequência da mudança na estrutura de atendimento. A emergência sanitária obrigou unidades de saúde do país todo a redirecionar equipes para a linha de frente da luta contra a covid-19. Procedimentos eletivos, que não são urgentes, foram muito impactados.

Entre as áreas mais afetadas estão as consultas e exames em citopatologia (-51%), neurologia (-40%), anatomopatologia (-39%), cardiologia (-38%), oftalmologia (-34%) e medicina clínica (-33%). 

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O 1º semestre de 2021 também apresenta queda em relação ao ano anterior à pandemia. O número de procedimentos eletivos chegou a 50 milhões, queda de -14% na comparação com 2019.

Já os dados do Ministério da Saúde a respeito dos transplantes no SUS indicam queda de mais de 10 mil operações desse tipo em 2020. Foram 13.042 ocorrência. Em 2019, o total havia chegado a 23.360. Hoje, a lista de espera na fila do transplante de múltiplos órgãos tem mais de 46,7 mil pessoas.

A reportagem da Agência Brasil alerta também que, no primeiro semestre de 2021, a taxa de doadores efetivos caiu 13%. Os transplantes sofreram retração de 24,9%, o que tem como motivação o aumento da taxa de contraindicação por risco de transmissão do coronavírus, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

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Aristóteles Cardona afirma que, mesmo se não houvesse demanda reprimida, o período pós-covid já representaria uma desafio para a estrutura de saúde do Brasil, "Não tem como a gente não citar todas as consequências das pessoas que tiveram covid nesse período", pontua.

"A gente vê a propaganda oficial comemorando o número de pessoas recuperadas. Mas o fato de a gente ter tantas pessoas recuperadas foi porque essas pessoas adoeceram" ressalta ele.

O médico lembra que boa parte dos pacientes e das pacientes se recuperaram com sequelas, como dificuldades respiratórias. Segundo Aristóteles, esses casos "já estão demandando acompanhamento, monitoramento e tratamento pelo Sistema Único de Saúde".

Para evitar riscos, segundo Aristóteles, é preciso organização e investimento, "A gente teve um financiamento extra, que foi aprovado por conta da covid e deu conta  de algumas necessidades Brasil afora. A partir de agora, especialmente quando acabar este ano, a gente vai passar por um período pior ainda", afirma

Ele cita os limites de verba com o teto de gastos, que congela o crescimento do orçamento da saúde desde dezembro de 2016, quando Michel Temer (MDB) assumiu a presidência da República e conseguiu aprovar uma emenda constitucional que limitou os recursos investidos aualmente no sistema. "A gente precisa de verba e precisa de estrutura. Isso passa, necessariamente, pelos governos, especialmente pelo governo federal", pontua.

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