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Saúde amplia verba para ribeirinhos, mas ultraprocessados, garimpo e desigualdade travam avanço

Equipes de Saúde da Família terão mais investimentos e estrutura e devem chegar a mais regiões ainda este ano

O anúncio de que o governo federal vai reajustar em 30% o custeio das Equipes de Saúde da Família Ribeirinha (eSFR) representa um passo na solução de desigualdades históricas no acesso dessas populações, mas não resolve questões estruturais e o avanço de doenças causadas pela mudança nos modos de vida desses territórios.

Na própria divulgação dos novos valores, a ministra da Saúde Nísia Trindade afirmou que os obstáculos a serem vencidos exigem mais ações. “Ainda há desafios (…). Estamos escutando as demandas para garantir mais estrutura”, ressaltou ela.

O incremento nos investimentos prevê mais verbas para veículos, transporte fluvial, incentivos ao desempenho das equipes e ampliação dos municípios atendidos. O reforço vai causar impactos substanciais, especialmente na atenção primária, a porta de entrada do Sistema Único de Saúde.

Em conversa com o podcast Repórter SUS, o pesquisador da Universidade de São Paulo, Luís Marcelo Camargo, que atua há trinta anos na área de saúde das populações ribeirinhas em Rondônia, afirma que o recurso é bem-vindo, mas lembra que essas regiões também enfrentam problemas de gestão, que precisar ser solucionados.

“Pelo detalhamento, a verba está bem distribuída, a qualidade da distribuição desses valores está bem racional, e pega exatamente nos pontos fracos da estratégia Saúde da Família Ribeirinha. Mas, muitas vezes, na periferia do sistema, nas secretarias municipais de saúde, há um ponto fraco desse elo. Há cargos políticos onde seria preciso ter técnicos. Há dificuldades na implementação porque há uma gestão frágil”.

Há décadas, os obstáculos estruturais minam a eficácia das políticas públicas nos territórios ribeirinhos. Elas vão da questão geográfica à questão política e, atualmente, têm um elemento a mais. O anúncio do ministério chega em um momento de transição cultural e, consequentemente, epidemiológica.

Se nas décadas de 1990 as equipes lidavam com malária e parasitoses, por exemplo, hoje enfrentam uma epidemia silenciosa de doenças crônicas. Hipertensão, diabetes e obesidade avançam em comunidades, onde ultraprocessados substituíram a farinha de mandioca e o peixe fresco.

Na participação o podcast, o pesquisador Luís Marcelo Camargo relata uma cena emblemática que viveu em um mercado flutuante do Rio Madeira. No local, ele viu até mesmo uma quantidade significativa de peixe em lata, vendido no que já foi considerado o rio com o maior número de espécies de pescado do planeta.

“Metade da parede (de produtos) era de bebidas alcoólicas, a outra de carboidratos fáceis e ultraprocessados, como bolachas e macarrão. Havia muitos ultraprocessados, como mortadela e embutidos e, para minha surpresa, sardinha em lata no Rio Madeira. Com esse desvio de eixo socioeconômico, as pessoas também deixaram de usar força física para fazer seus afazeres. Com isso veio obesidade, sedentarismo e, a reboque, as doenças crônicas não transmissíveis”.

Outro desafio citado na entrevista é o avanço do garimpo ilegal, que obriga populações inteiras a modificarem as formas de ganho de vida, os modos de produção e a abandonares práticas ancestrais.

O novo eixo socioeconômico da região está sendo implementado sem controle e fiscalização, de maneira irregular. Com isso, polui as águas, muda a alimentação e aumenta até a ocorrência de infecções sexualmente transmissíveis. Segundo o pesquisador, esse cenário pode ter impactos significativos, principalmente para as novas gerações.

“Como são povos tradicionais, o ensinamento passa de uma geração para outra pela oralidade e pela observação do trabalho. O ribeirinho tradicional caça nas áreas não alagadas na época de chuva e consome o que produziu na época da seca. Ele pesca porque os rios começam a dar peixe quando diminui o volume do rio. Planta melancia, mandioca, milho, feijão. Isso não está sendo repassado para as outras gerações por causa dessa quebra do eixo socioeconômico e cultural”, alerta.

O Repórter SUS é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz. Novos programas são lançados todas as semanas. Ouça aqui os episódios anteriores.

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