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SUS sem racismo: como transformar teoria em prática no maior sistema público de saúde do mundo?

Repórter SUS debate maneiras de tirar do papel a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra

Mais de 15 anos após a instituição da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), um dos principais desafios do Sistema Único de Saúde (SUS) continua sendo tirar as diretrizes do papel e levar o debate à prática. Os dados consolidados mais atuais do Ministério da Saúde indicam que, em 2021, apenas 32% dos municípios brasileiros tinham incluído ações do PNSIPN em seus planos de saúde.

Além disso, pouco mais de 6% tinham instâncias específicas para conduzir, coordenar e monitorar as ações de saúde voltadas para a população negra. Ou seja, mais de 93% dos territórios municipais brasileiros não implementaram a totalidade do potencial da política. Por outro lado, a população negra ainda é a mais acometida por diversas doenças e condições, um reflexo da desigualdade histórica no acesso. A mortalidade materna, por exemplo, tem uma taxa duas vezes superior entre as mulheres negras.

Doenças como aids, tuberculose e hepatite também acometem mais as pessoas pretas e pardas. Estudos indicam ainda que, em comparação com as mulheres brancas, as mulheres negras apresentaram 44% mais chances de incidência do câncer de colo do útero. O risco de morte é 27% maior.

Em entrevista ao podcast Repórter SUS, o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Brasília Andrey Lemos aborda aspectos fundamentais para a garantia de um SUS antirracista.

Especialista em saúde pública e militante pelos direitos da população negra, ele enfatiza que os piores indicadores e as maiores iniquidades em saúde no país são étnico-raciais. Segundo Lemos, considerar os recortes de raça e de gênero é essencial para solucionar os problemas do setor.

“É importante lembrarmos de qual país e de qual sociedade estamos falando. É uma sociedade que teve a sua economia consolidada a partir de um sistema racial que explora existências negras e indígenas em nosso país. Ou seja, o capitalismo foi fundamentado em um processo de acumulação desse capital para alguns grupos minoritários, com base na exploração desses grupos que são majoritários na nossa sociedade, mas que nunca tiveram o poder sobre os meios de produção, a oportunidade de ocupar espaços de decisão e, consequentemente seguem sendo subalternizados, inclusive pelas políticas públicas.”

Na conversa, o pesquisador fala sobre a urgência de que profissionais de áreas como saúde, educação e segurança pública compreendam os impactos da desigualdade estrutural e que seja reconhecida a importância do debate sobre esse tema para a busca de soluções. Andrey Lemos pontua que o Brasil já tem diretrizes e legislações que levam em conta a diversidade presente nos territórios e que entendem que ela deve ser considerada na formulação das políticas. No entanto, a prática ainda deixa a desejar.

“Ocorre que, ainda hoje, nós temos uma educação e uma formação profissional baseadas na identidade de um sujeito universal. Quando pensamos nesse sujeito universal – presente nas capas de revista, nos holofotes dos jornais, que tem os maiores seguidores nas redes sociais e ocupam os espaços de poder, destaque de representatividade positiva na nossa sociedade – as pessoas negras e indígenas, por exemplo, ficam sub-representadas e não são lembradas.”

Frente a esse cenário, o especialista afirma que um dos passos práticos essenciais para a construção de um SUS antirracista é a formação profissional de quem atua no sistema e atende à população. Segundo ele, é preciso que as equipes à frente do SUS tenham a compreensão de que o racismo aumenta a pobreza e, consequentemente, as dificuldades no acesso.

“Esse aumento da pobreza impede, muitas vezes, as pessoas de terem informação sobre uma boa alimentação, estar presente nas consultas, conseguir fazer o seu diagnóstico e de ter uma boa adesão aos tratamentos. Se não considerarmos que esses aspectos são decisivos, vamos continuar nadando contra a maré e nunca vamos conseguir alcançar melhores números no enfrentamento a determinadas doenças ou condições crônicas presentes na nossa sociedade.”

Outros olhares para acabar com a negligência

Andrey Lemos também fala sobre a importância de atuar para transformar os “olhares públicos” sobre as pessoas negras e enfatiza a necessidade de combater preconceitos e julgamentos. Práticas racistas diminuem a possibilidade de esses grupos permanecerem nos espaços de saúde e construírem vínculos de confiança.

Ele lembra ainda que é preciso dar atenção a doenças e condições comumente negligenciadas e que atingem mais a população negra, além de considerar as particularidades nos serviços de urgência e emergência. O sistema precisa colocar na conta que condições como a hipertensão, por exemplo, são mais prevalentes na população negra, o que pode demandar uma avaliação de urgência diferenciada.

A abordagem interseccional também é encarada como necessidade máxima. É preciso ir além dos aspectos biológicos e analisar determinantes sociais de saúde, como condições de vida, moradia e trabalho, acesso à água e saneamento, tempo de deslocamento, segurança alimentar e contexto familiar.

“A falta de um olhar humanizado sobre esses corpos e sobre essas vivências, considerando os aspectos sociais, culturais e econômicos nos quais estão inseridos, faz com que, na maioria das vezes, essas pessoas não sejam bem tratadas, não tenham um bom acompanhamento e, muitas vezes, inclusive, abandonem o tratamento”, alerta o pesquisador.

Para isso, é preciso ter foco na multifatoriedade das garantias da saúde como direito humano. Elas não podem estar apenas na conta do SUS e precisam ter presença também nas políticas de educação, cultura, justiça e combate à violência.

“O problema da violência policial e da política antidrogas é também um problema que precisa ser considerado de saúde pública, porque isso vem dilacerando famílias. Como é que fica a saúde mental dessas pessoas que saem de casa para ir à escola, ir ao trabalho, mas não sabem se vão voltar vivas, se seus filhos vão voltar vivos? A justiça e o Estado precisam dar atenção maior a esse aspecto, porque essas pessoas também merecem dignidade na relação com o Estado. O Estado não pode ter uma presença somente de violência, de vigilância ou de intervenção. Ele também precisa ser de cuidado, prevenção, promoção e proteção dessas vidas”, conclui.

O Repórter SUS é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Novos programas são lançados toda semana. Ouça aqui os episódios anteriores.

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