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Se o artista não se posiciona, a música dele pode não dizer nada, diz Guilherme Marques, baterista do duo (I)miscível

Ao lado do trompetista Amilcar Rodrigues, dupla transforma a escuta em gesto político e estético

“A música sendo instrumental, ela não tem discurso direto. Se o artista não se posiciona, a música dele pode não dizer nada”, observa Guilherme Marques, baterista do duo (I)miscível, em participação no episódio #56 do podcast Sabe Som?, apresentado por Thiago França e produzido pelo Brasil de Fato.

De acordo com o baterista, apesar de ser associada à liberdade criativa, a música instrumental brasileira quase sempre preferiu o silêncio quando o assunto era política. Ao contrário do jazz norte-americano que é uma reação política, onde o free jazz nasceu como forma de protesto e enfrentamento, — tanto nas sonoridades quanto na postura pública de seus artistas — , aqui no Brasil “foram poucos artistas que se colocaram de uma maneira política mais contundente” diante das contradições sociais.

“O que eu vejo é que muitos dos artistas americanos do free jazz, além de tocar de forma de protesto, tinham o discurso direto mesmo, a fala, a posição, a maneira como se colocavam na sociedade”, destaca Marques.

É no campo de tensão entre som, silêncio e posicionamento que atua o duo (I)miscível, formado por Guilherme e pelo trompetista Amilcar Rodrigues. O projeto, que parte da improvisação livre, não segue fórmulas ou estruturas preestabelecidas. 

A proposta do duo se constrói a partir de encontros musicais e do confronto com as singularidades. “Acho que todo mundo, quando toca, tem um pouco dessa ideia de que a gente conversa, a gente dialoga, e a gente tanto expõe a nossa identidade, a nossa personalidade, quanto a gente aceita e recebe um pouco da identidade, da personalidade das pessoas que tocam com a gente”, diz o baterista. 

O nome do duo, como explica o trompetista Amilcar, tem como destaque um “i” entre parênteses (I)miscível, “que já entrega o jogo. Mistura ou não mistura?”, e a ambiguidade não é acidente, é conceito. “E isso é um pouco o que esse nome traduz: essa liquidez, essa coisa que em alguns momentos se mistura, compondo uma nova situação, e em outros momentos não. E isso faz parte da música improvisada, em geral”, complementa Marques

Ainda sobre o nome, Marques conta: “esse nome foi ideia do Cuca Ferreira, nosso produtor no primeiro disco. Ele sugeriu ‘imiscível’ com esse ‘i’ entre parênteses, que pode ser lido ou não. Ele realmente se preparou para o assunto, trouxe uma folha e uma coisa toda, de quem vem da publicidade e quando algo elaboram tem começo, meio e fim”.

Liberdade e improvisação

Na conversa, Thiago França, que foi colega de Unicamp do baterista Guilherme Marques nos anos 1990, relembra que na época, a improvisação livre ainda era marginal, se não totalmente ausente. Como confirma Marques: “Não era um assunto, e também não havia espaço. Era um lugar que recebia esse tipo de coisa. Não tinha uma abertura para isso”.

Amilcar Rodrigues, que conheceu o baterista em 1998 na Oficina de Música de Curitiba, ainda relata que mesmo recentemente, há pouco mais de 10 anos, o improviso ainda não era bem recebido. “A minoria das pessoas que estavam fazendo esse tipo de som eram músicos profissionais ou músicos instrumentistas. Era sempre um cara que era artista plástico e tocava também alguma coisa, ou tinha outra profissão, mas já tinha um certo nível no instrumento e gostava desse tipo de som. Mas eu sempre sentia um certo preconceito dos músicos em geral mesmo”, conta.

Com o tempo, o que parecia impensável virou prática. “Esse foi o lugar que eu me achei. É um dos lugares que eu me sinto em casa. Mais do que tocando repertório de jazz, eu tenho mais identificação com a improvisação livre”, conta Rodrigues. No entanto, ele aponta que não se trata de liberdade no sentido aleatório, mas que o duo persegue vem da escuta e do desapego ao controle. “Esses ensaios servem mais para descobrir o que a gente não vai usar no show do que pra combinar o que a gente vai tocar”.

“Você precisa se desprender dessas preocupações, porque se você pensa ‘puxa, será que se eu fizer isso aquela pessoa vai achar isso ou aquilo?’, aí você já dançou. Já está colocando um filtro naquilo que você vai fazer. E acho que o grande barato é não ter filtro”, completa o Marques.

Nem toda proposta de improvisação, no entanto, compartilha essa abertura. O baterista também critica a rigidez de certas escolas, especialmente na Europa, que se colocam contra qualquer traço de melodia, harmonia ou ritmo. “Eu particularmente tenho dificuldade de lidar com esses lugares em que as restrições começam a limitar um pouco o campo de expressividade. Se tem groove, se gera uma situação melódica […] beleza. Isso é bonito, tem expressividade.”

A escuta profunda também passa por valorizar o silêncio — não como ausência, mas como matéria. “É um lugar que a gente tem um certo medo de lidar. As pessoas têm um certo constrangimento de jogar com o silêncio”, observa Marques

O primeiro álbum 

Em 2022, o duo lançou seu primeiro álbum, distribuído em dois volumes (I)miscível vol. 1 e Vol. 2. O trabalho foi gravado em São Paulo, no Galpão Cru, espaço onde acontecia uma exposição crítica à condução da pandemia pelo governo Bolsonaro — contexto que impactou diretamente o processo criativo. “Aquilo influenciou muito o som. […] O Cuca falou: ‘por que você não experimentam fazer um disco bonito. Faz um disco de improvisação, mas procurando um lugar de beleza melódica, que resvale em lugares tonais ou modais, mas que não massacre mais a gente’. A gente estava saindo de dois anos de só notícia ruim, só caos”, lembra Marques.

O resultado foi um álbum mais contemplativo, feito a partir de apresentações ao vivo. “O disco é uma fotografia daquele momento, do que a gente fez naquela hora. Depois que você grava, tem que fazer outra coisa”, diz o trompetista. “Não faz diferença se aquilo foi feito na hora ou se levou anos para compor. O que interessa é que aquilo não vai ser reproduzido nunca”, completa.

Para Marques, mais do que um duo, (I)miscível virou um território de investigação sobre som, presença e política. “Improvisação livre é um dos poucos lugares em que a música oferece um encontro saudável entre músicos treinados e não treinados”, conclui.

O podcast Sabe Som? vai ao ar toda sexta-feira, às 10h da manhã, nas principais plataformas, como Spotify e YouTube Music.

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