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‘Se a lei ‘anti-Oruam’ for aprovada, o movimento funk vai se levantar e revidar’, diz pesquisadora

Projeto de lei visa proibir a prefeitura de SP de contratar ou apoiar artistas que 'fazem apologia ao crime ou ao uso de drogas'

“Eu falo como uma militante do movimento funk, que está na linha de frente há aproximadamente 15 anos. Eu percebo que toda vez que tem uma atrocidade dentro do movimento, naturalmente, ele se organiza e destoa de uma forma organizada dentro do campo político”, explicou a especialista da cultura funk e articuladora da Frente Nacional de Mulheres do Funk, Renata Prado, que participou do podcast Três Por Quarto, desta quinta-feira (6). 

Por “atrocidade”, Prado se refere ao projeto de lei “anti-Oruam”, que busca proibir gestões municipais de contratar ou apoiar eventos envolvendo apologia ao crime e a facções. O texto visa legislar sobre os shows de funk e rap sob a justificativa proteger o público infantojuvenil. A lei, nomeada pejorativamente em referência ao cantor de trap carioca Oruam, foi apresentada primeiramente em São Paulo e, depois, replicada em outras onze capitais brasileiras.

A especialista explica que o texto da lei aborda todas as questões que o Estatuto da Criança e do Adolescente já traz, em relação à proteção e cuidado com esse público, mas sob uma perspectiva moral. “O que está posto na lei anti-Oruam já está descrito no Estatuto da Juventude, já está no ECA. Então, é uma replicação baseada no moralismo e existe uma manipulação política e social para criminalizar um movimento que está na periferia, mas não é criminoso”, diz a especialista. 

Assista aqui:

Renata lembra que, assim como outras expressões culturais, o funk também fala da realidade das periferias Brasil afora. “Não tem como o movimento funk fugir desse rótulo de  marginalização e criminalização, porque estamos falando de um movimento cultural de jovens periféricos e favelados, em sua maioria negros, que estão ali falando do seu cotidiano, que também fala sobre poder paralelo e enfrentamento às questões políticas, o que não é interessante para política que a gente tem hoje”, explica.

Ela aproveita para fazer uma crítica ao discurso moralista que tem como alvo as letras das músicas “sem considerar a escolha de corpos de mulheres”. “Eu não estou falando de crianças e nem de adolescentes, mas sim de mulheres, que decidiram ser sexualmente livres”, diz. “E aí, a gente também precisa entender essa adestração do corpo feminino, de não querer que a gente fale abertamente sobre sexo, como se isso não fosse parte da nossa condição humana”, finaliza a especialista. 

A edição desta semana do Três Por Quatro também contou com a participação do cientista político e doutorando em mudanças sociais, pela Universidade de São Paulo (USP), Joselicio Junior, que estreou como comentarista fixo do podcast. No bate-papo, ele reforça que a lei “anti-Oruam” é uma forma de criminalizar o movimento periférico e complementa dizendo que, “mais do que aprovar ou não aprovar a lei, se quer construir um campo político conservador, disputar o cotidiano das pessoas, a partir de um viés conservador”. “Então, é criminalizar uma determinada expressão cultural, que tem lastro na juventude, que tem uma raiz negra e popular, para criar um projeto de dominação.” 

Junior fala também das contradições desse projeto de lei. “Olha que interessante: de um lado querem proibir a contratação de funkeiros, mas, por outro lado, há sertanejos que são contratados com super cachês, que às vezes é maior do que o orçamento de saúde de uma cidade de pequeno porte, e ninguém fala de proibir isso, por exemplo”, reflete o cientista político. 

Diálogo ao invés de repressão

O especialista lembra ainda que o funk é a expressão de uma parte considerável da sociedade brasileira “porque dialoga com uma subjetividade do cotidiano”. “Por exemplo, o debate sobre a ostentação, o que que é a ostentação, se não uma busca por uma superação da sua condição de miserabilidade? Talvez não seja pelo viés que a gente gostaria, a gente pensaria em um projeto mais coletivo. Mas, em uma sociedade extremamente fragmentada, extremamente individualizada, superar a sua condição, através da música, da cultura, e poder ostentar e até servir de exemplo para outros jovens como uma possibilidade de ascensão social, faz sentido”, explica. 

Ouça:

Diante disso, o cientista político acredita que o poder público precisa se aproximar desse movimento,“ter o mapeamento desses territórios, estabelecer um diálogo com esses jovens e pensar alternativas de horário e espaços para a realização dos bailes funks”. 

O videocast Três Por Quatro vai ao ar toda quinta-feira, às 12h ao vivo no YouTube e nas principais plataformas de podcasts como o Spotify.

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