Quando Luiz Inácio Lula da Silva venceu as eleições presidenciais brasileiras em 2022, uma espécie de alívio coletivo tomou conta não apenas do Brasil, mas também da América Latina e, até mesmo, da Europa. Seu antecessor não havia causado apenas graves prejuízos internos – humanos e ambientais – como também havia enfraquecido drasticamente a articulação dos países do continente, enquanto confrontava-se, com frequência, com os países europeus diante das críticas à política oficial de desmatamento e ampliação do garimpo.
Nos meses seguintes, Jair Bolsonaro seria condenado pela justiça eleitoral e transformado em inelegível, enquanto seus aliados mais próximos eram investigados pela Polícia Federal e por uma Comissão do Congresso por tentativa de golpe de Estado. Somada à derrota anterior de Donald Trump e seu semelhante ajuste de contas com as instituições estadunidenses, a onda neofascista, que ascendera em todo mundo, parecia um curto pesadelo prestes a acabar. E então, a Argentina elegeu Javier Milei.
É simbólico que não apenas Jair Bolsonaro, mas também Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, estivesse lá. A ausência de qualquer um dos chefes de Estado dos países do G20 também é ilustrativa. Milei nos recorda que a ameaça da extrema direita continua vigente; e que parte desta direita constitui uma espécie de “Internacional do Mal”, antiga pretensão e construção do ex-ideólogo de Trump, Steve Bannon.
Panorama europeu
Evidentemente, não se trata de um problema latino-americano. Na França, Marine Le Pen, candidata do partido de extrema direita Reunião Nacional (RN), perdeu as eleições presidenciais para Emmanuel Macron. Entretanto, obteve 42,4% dos votos, o melhor resultado de um candidato de extrema direita no país desde 1958.
O partido de extrema direita Irmãos da Itália (FdI) não apenas sextuplicou sua votação e ocupou a maior parte das cadeiras do Parlamento, como sua líder Giorgia Meloni alcançou o cargo de Primeira-ministra.
Na Polônia, o Partido Lei e Justiça perdeu o governo, mas manteve a maioria das cadeiras do Parlamento. Na Holanda, Geert Wilders, um político anti-islâmico e anti-União Europeia, venceu as eleições legislativas, conquistando 37 dos 150 assentos no Parlamento holandês. Isso, sem mencionarmos que a possibilidade de um retorno de Donald Trump à Casa Branca é uma ameaça real e provável.
Como chegamos até aqui?
Em cada um destes países, em cada um destes episódios, nos perguntamos: “como chegamos até aqui?”, “como isso foi possível?”. E, para nenhuma destas perguntas, encontramos respostas simples. Ao contrário, nos encontramos diante de um fenômeno complexo e multifacetado, que exige uma análise aprofundada para compreender suas raízes, dinâmicas e impactos.
Em suas múltiplas aparências, muitos têm sido os rótulos para definir estes movimentos – conservadores, populistas, de direita, etc -, entretanto, o termo neofascista parece apropriado, quando consideramos que tanto suas encarnações modernas quanto o movimento original têm como núcleo dirigente o capital financeiro e uma classe média frustrada e raivosa como sua base social. Mas é capaz de se infiltrar nos setores populares, graças às fragilidades da esquerda e das organizações populares.
Ofensiva neoliberal
Como bem apontam Stefanie Ehmsen e Albert Scharenberg em um estudo para a Fundação Rosa Luxemburgo em 2018, a origem dos novos avanços da extrema direita são resultados da ofensiva neoliberal que acentuou a desigualdade social, agravou a pobreza com políticas de austeridade e ideologicamente transformou inclusive o conceito de “Sociedade”, no melhor estilo de Margaret Thatcher, reduzindo a uma mera aglomeração de indivíduos.
As políticas neoliberais debilitaram a esquerda porque empobreceram, fragmentaram e isolaram suas bases sociais, os trabalhadores e as trabalhadoras. Ao mesmo tempo, promoveram uma ultrafinanceirização, que não apenas tem produzido frequentes colapsos econômicos, como também promove uma acelerada destruição do meio ambiente e amplia as reduções de direitos trabalhistas, como mecanismo para compensar os prejuízos causados por sua própria irracionalidade.
Neofascismo
Para sustentar uma sociedade que comporta apenas 1% de super-ricos, o capital financeiro necessita de políticas cada vez mais repressivas para manter políticas cada vez mais austeras. Portanto, o neofascismo não é um efeito colateral do neoliberalismo, mas sua fase seguinte, necessária para aprofundar e manter as políticas autoritárias na economia ou nos direitos.
Há outras semelhanças entre o velho e o novo fascismo. Ambos se movem por um culto à ação e a recusa à razão – elevada ao negacionismo sanitário ou climático – que nada mais é do que a negação a pensar ou refletir.
O léxico fascista é pobre e suas explicações para quaisquer situações são simples, justamente porque é preciso omitir, ignorar ou negar as contradições. Para impedir que estas contradições produzam um efeito desagregador, é necessário construir uma identidade acima destas contradições.
O “cidadão de bem”
A mais comum delas é, evidentemente, a identidade nacional, que oferece tanto a ideia de pertencimento ao “povo”, quanto um inimigo, todo aquele que não seja originário destas fronteiras, imigrantes ou países vizinhos.
Entretanto, esta identidade pode ser também, no caso do Bolsonarismo, o “cidadão de bem”, aquele que paga seus impostos, mas não recebe serviços públicos de qualidade; o que trabalha, enquanto “parasitas” são assistidos por este mesmo Estado; o que tem o direito de defender suas ideias e propriedades mesmo que armado.
Assim, do Fascismo original, a extrema direita contemporânea herda os discursos punitivistas e militaristas – e não à toa, em alguns casos, formam-se em torno deles milícias; um conservadorismo social; o anti-intelectualismo, negacionismo e o combate à cultura letrada como elitista; o anticomunismo e anticorrupção.
Vide os recentes discursos de Donald Trump, na corrida eleitoral, prometendo punir todos seus inimigos e “erradicar os comunistas, os marxistas, os fascistas e os bandidos da esquerda radical que vivem como vermes dentro dos limites do nosso país, que mentem, roubam e trapaceiam nas eleições”.
“Os fortes sobrevivem”
Merecem nossa atenção também as novas características que a extrema direita apresenta. O velho fascismo, contemporâneo das crises econômicas das décadas de 1920 e 1930, desprezava o liberalismo. O novo fascismo o idolatra.
Diante das crises política, econômica e sociais agravadas da última década, o neofascista se nega a perceber que a origem destas crises está na própria lógica parasitária e especulativa do capital financeiro. Ao contrário, seu ideário acredita ser natural que “só os fortes sobrevivam”.
Aqui, emerge a figura do empreendedor, o self-made man, aquele que é capaz de sobreviver sozinho ou de construir sua própria riqueza, uma propaganda sofisticada para maquiar o trabalhador sem vínculos empregatícios estáveis, sem direitos e submetido a jornadas infinitas de trabalho.
Indústria cultural
Para tanto, é determinante o papel da indústria cultural. Por um lado, de Mad Max à Walking Dead, Hollywood nos oferece cotidianamente distopias apocalípticas que nos convencem de que é mais provável – e aceitável – que o mundo acabe do que o sistema capitalista.
Por outro lado, eleva à condição de divindade jovens herdeiros brancos do setor tecnológico. Quando os dois maiores bilionários do planeta queimam combustível fóssil e milhões de dólares para passearem por alguns minutos no espaço, enquanto na Terra milhares padeciam da pandemia do covid-19, somos levados a crer que isso é disruptivo ou ousado e não a completa desconexão com a humanidade que os 1% mais ricos exercem.
Big techs
E, efetivamente, não há neofascismo sem o trabalho árduo das big techs em censurar e direcionar conteúdo, modular algorítmicos, violar privacidades e leis comerciais. O Vale do Silício fornece tanto o conteúdo ideológico, quanto o aparato de estrutura necessário para o disparo massivo de mensagens, para a construção de bolhas de isolamento, ao contraditório, para a vigilância e classificação dos “eleitores” e seus comportamentos.
Os neofascistas não são gênios da empatia e da propaganda. Eles são alimentados por estratégias elaboradas e alimentadas por milhares de dados extraídos pelo uso frequente de redes sociais.
Fundamentalismo religioso
Por fim, o conservadorismo moral, presente no fascismo original, agora é potencializado com duas dimensões. Primeiro, o fundamentalismo religioso. A ofensiva neoliberal na América Latina abriu caminho para a expansão de igrejas neopentecostais, ao mesmo tempo, setores mais conservadores da Igreja Católica fortaleceram-se como alternativa a essa “concorrência”, além de derrotar internamente setores progressistas da Teologia da Libertação, presente nos movimentos contestatórios dos anos 1970 e 80.
O fundamentalismo religioso incorpora o discurso empreendedor, através da Teologia da Prosperidade, mas também os discursos punitivistas e armamentista, como política de aliança com estes setores. Coesiona sua unidade na definição do Estado como inimigo a ser batido, assim como para os liberais e “anticorrupção”, uma vez que a laicidade do Estado é considerada como um obstáculo à sua ação.
Guerra cultural
A segunda dimensão é a ideia de “guerra cultural”, termo cunhado no livro Culture Wars: A Luta para Definir a América, de James Davison Hunter, em 1991. Hunter defendia que temas como aborto, porte de armas, aquecimento global, imigração, separação da igreja e do estado, direitos LGBT estavam transformando — e corrompendo — a política e a cultura americana.
A “guerra cultural” também cumpre um papel coesionador para agregar os conservadores tradicionais e os fundamentalistas religiosos por motivos óbvios, mas também os liberais, que rejeitam os “custos” dos acessos das minorias ao Estado e alegam uma sabotagem da meritocracia, quando marginalizados ascendem aos seus direitos.
Recente pesquisa do American Compass sobre os eleitores do Partido Republicano nos Estados Unidos revelou que os temas tradicionais como cortes de impostos, desregulamentação e livre comércio foram suplantados pela preocupação com o ativismo transgênero (preocupação de 69% dos entrevistados), as “corporações” woke (62%) — como definem movimentos liberais e identitários, a imigração ilegal (60%) e a doutrinação “racial” (52%).
Atuação em rede
Esta hegemonia não teria sido alcançada, nos Estados Unidos ou em outros países, não fosse a atuação em rede de diversos Think Thanks. No caso brasileiro, estas organizações privadas, ligadas à economia petrolífera, financiam desde 2013 a formação de lideranças e a construção de movimentos e candidatos de extrema direita.
A eles se somam instituto liberais locais criados na década de 1980, institutos militares e uma multidão de youtubers e influencers de redes sociais, cujo maior expoente é uma produtora de vídeo chamada Brasil Paralelo, dedicada a “reescrever” a história do Brasil e propagandear através estas versões pela internet. A produtora é a maior anunciante do país em propagandas na Meta.
Estruturas organizadas
Isso nos leva ainda a duas conclusões. Primeiro, ainda que estes movimentos de extrema direita se apresentem como antissistema, quase espontâneos e gerados por alguma indignação coletiva, na prática, são estruturas bem organizadas, centralizadas e com alto financiamento.
A estética artesanal ou simples faz parte da ilusão de que se tratam de movimentos “naturais”, amplos ou largamente participativos. A atuação do “Gabinete do ódio”, instalado dentro do aparelho de Estado no governo Bolsonaro, alimentava uma gigantesca rede de sites, canais de youtube e grupos de mensagens instantâneas e conferia coesão no discurso e unidade na ação. A estrutura de fabricação de falsas notícias e disparo de mensagens era também chamada por ele de “sua Inteligência paralela”.
A nova direita
Segundo, por maior que seja a coesão emanada do centro do Movimento, não tratamos de sujeitos homogêneos e monolíticos. A pesquisa do American Compass dividiu o eleitor republicano em seis matizes distintas em uma escala entre a Velha Direita (mais preocupada com questões econômicas) e a Nova Direita (dedicada às questões culturais), com predomínio dos setores intermediários, os que agregam pontos de ambos pólos. No caso brasileiro, a pesquisadora Isabel Kallil identificou 16 classificações entre os eleitores de Jair Bolsonaro.
Estes dados tanto apontam que, diante da diversidade, é possível construir tática de descolamento e atração de setores hoje arregimentados pela extrema direita para um campo progressista. Mas, ao mesmo tempo, revelam a capacidade destes movimentos em manter a coesão de um campo amplo e heterogêneo.
Articulação
Da mesma forma, o movimento neofascista alimenta-se conjuntamente da ofensiva econômica e ideológica, mas não se articula internacionalmente de forma coesa. Na América Latina, são mais presentes os think thanks estadunidenses. Nos últimos anos, o partido espanhol Vox passou a buscar alianças e dar suporte aos seus congêneres latinos.
Na Europa, são antigos partidos regionais ou neonazistas que se fortaleceram com a onda, enquanto no Leste, interesses de grupos econômicos e milícias invadem o campo da política. Além disso, setores específicos da extrema direita possuem os seus próprios canais de articulação, como militares, religiosos e juristas.
Desafios da esquerda
Se os aspectos ideológicos receberam mais destaque aqui do que os avanços eleitorais, é porque aquele precede este. E é porque é neste terreno que a esquerda tem sido derrotada antes dos colégios eleitorais.
É verdade que a ofensiva neoliberal debilitou as organizações de esquerda tanto materialmente, com o empobrecimento e fragmentação de sua base social, quanto ideologicamente. Diante deste cenário, muitas organizações optaram por saídas defensivas, enquanto outras moderaram seus discursos até se descaracterizarem ao ponto de deixarem de existir.
É certo ainda que, diante das transformações no mundo do trabalho, muitas organizações não conseguiram impedir o desmonte das estruturas anteriores do estado de bem-estar — ou de uma mínima presença estatal, no caso latino-americano — mas tampouco de apresentar programas e saídas coletivas que protegessem ou identificassem estes novos trabalhadores, abandonados à própria sorte do “empreendedorismo”.
Muitos ignoraram o potencial ou a ameaça das redes sociais e trataram de ocupar este espaço, sempre atrasados ou menos eficientes. Assim, muitas organizações abandonaram os processos internos e massivos de educação popular e formação política e o desafio de projetar novas lideranças.
Enfrentar os monstros
A luta antifascista deve ser, em primeiro lugar e como sempre, internacional. As alianças entre partidos, sindicatos, movimentos e todas as formas de organizações não podem se limitar às próprias fronteiras. Para barrar a ação dos blocos, é necessário responder também em blocos. O nosso tempo tem nos legados desafios não só estruturais, mas globais. Não há saídas individuais para a catástrofe climática, por exemplo, ou para a tragédia migratória. Não há limites nacionais que sejam respeitados pelos aparelhos não-institucionais do fascismo, como as big techs.
Para enfrentar os monstros do fascismo, a esquerda precisa reencontrar-se consigo mesma. Diante de problemas estruturais contemporâneos — a catástrofe climática, a catástrofe migratória, os conflitos bélicos — a esquerda deve ter a ousadia de propor saídas igualmente estruturais. A moderação e a gerência das crises, como visto na Argentina, é insuficiente para produzir mudanças reais.
Diante das distopias, a esquerda precisa novamente oferecer uma utopia que seja poderosamente mais atraente do que o charlatanismo dos Mileis e Bolsonaros. É preciso enfrentar a resignação com o universo paralelo dos 1% mais ricos, com a recuperação dos ideais de igualdade, fraternidade e solidariedade.
E é preciso que essa utopia se materialize em uma cultura política, que se expresse na arte, na militância, na retomada dos trabalhos de base e de organização. E, para tanto, é necessário deixar as salas confortáveis para escutar, para conhecer a realidade, para refletir sobre ela e propor transformações.
Espaços coletivos
A luta contra a extrema direita não se dá “a frio” e não se pode mais acreditar que os desgastados freios das instituições da democracia ocidental sejam capazes de interromper esta marcha. Esta é uma luta, assim como a transformação cultural, que só se pode se dar “a quente”, no calor das ruas e das mobilizações de massas.
E isto só será possível se construirmos espaços coletivos entre partidos, sindicatos e movimentos populares, que sejam capazes de apresentar um programa concreto de transformações estruturais e reconectarem-se com as multidões capazes de produzirem lutas de massas.
*Miguel Enrique Stedile é Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integra a coordenação do Instituto de Educação Josué de Castro (RS) e é membro do Front – Instituto de Estudos Contemporâneos.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.